segunda-feira, 26 de março de 2018



DESCUBRA  A  VERDADEIRA  PÁSCOA


COMO  ESPERA  DEUS  QUE  O  SEU  POVO  CELEBRE  A  PÁSCOA  ?

"No dia seguinte João viu a Jesus, que vinha para ele, e disse: Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo." João 1:29

       A Páscoa chega na primavera, despoletando na nossa sociedade sentimentos opostos e paradoxais: A euforia do comércio, abastecido com todo o tipo de ovos e coelhos de chocolate, relaciona-se antiteticamente com uma tristeza sombria que a lembrança do sofrimento de Cristo impõe a alguns; a abstinência da sexta-feira da Paixão opõe-se aos festejos do domingo de Páscoa; a degradante queima do Judas contrasta com o sentimento de fraternidade que envolve as pessoas nesta época do ano.

Estas antíteses são ainda maiores quando pensamos nos símbolos que integram o universo pascal na Cristandade de hoje: o ovo e o coelho (muito enfatizados) opõem-se à cruz e ao cordeiro (minimamente recordados). Ao pensarmos nestes paradoxos pascais, surgem algumas perguntas:
- Afinal o que é a Páscoa?
- Qual é a origem da atual ênfase em símbolos como o do coelho ou o do ovo?
- Porque foi instituída a Verdadeira Páscoa, e qual é o significado dela para hoje e para o futuro?


A PÁSCOA PAGÃ

       A configuração da Páscoa que predomina atualmente na Cristandade desvia-se muito do que a Bíblia prescreveu sobre esta festividade. A Páscoa bíblica foi instituída para celebrar a libertação do povo israelita do cativeiro egípcio. Ela teve o seu início a partir da morte dos primogénitos residentes no Egito, em cuja casa não houvesse, nos umbrais da porta, o sangue do cordeiro pascal. O foco central desta festa está na morte do cordeiro, de quem vem o sangue que livra da morte e, portanto, que liberta da escravidão. Assim, a tipologia permite-nos ver na morte de Jesus (e não na Sua ressurreição) o cerne da Páscoa bíblica (I Coríntios 5:7).
       Quando Deus estabeleceu esta festa, Ele quis deixar claro o ensino de que a libertação dos Israelitas do cativeiro egípcio representa a libertação maior de todo aquele que crê no sacrifício substitutivo de Cristo. Por causa do pecado, todos os seres humanos estão condenados à destruição, mas em virtude do sangue que Jesus, o Cordeiro de Deus, derramou no Calvário, serão salvos todos os que aceitarem para si este sacrifício.
       Não é insignificante o facto de o foco da Páscoa ter sido deslocado para a ressurreição de Cristo. É verdade que o facto de Jesus ter ressuscitado, consolida a Sua vitória sobre o pecado. Mas a Bíblia tem outros símbolos para a ressurreição, como o Batismo por imersão, por exemplo (Romanos 6:4; Colossenses 2:12), e nunca relaciona o sentido da Páscoa com a ressurreição do Senhor. Na verdade, esta troca é um erro subtil e grave que foi introduzido no Cristianismo com o propósito de acomodar a religião de Cristo ao paganismo.

       Muitas culturas antigas celebravam uma espécie de Páscoa, que estava sempre relacionada com ofertas aos deuses pagãos, de modo a tornar a terra fértil para o cultivo agrícola. Por exemplo, o termo "Páscoa" em inglês é Easter e em alemão é Ostern. Ambos os termos derivam da expressão anglo-saxónica Eostre, que era o nome de uma deusa nórdica da primavera. Eostre (equivalente a Astaroth, deusa cananeia, e a Ceres, deusa romana) era a divindade anglo-saxónica e teutónica supostamente responsável pelo ressurgimento da vida vegetal na primavera, após os rigores do inverno. O apogeu das festividades em honra desta deusa ocorria em março, no início da primavera, período em que muitas culturas antigas celebram a festa dos deuses da fertilidade primaveril. De acordo com os mitos nórdicos, o coelho, por ser considerado muito fértil, era o animal preferido de Eostre. Os ovos eram os principais objetos usados para adorar a deusa, por serem vistos como símbolo da vida, do nascimento e da ressurreição. Para adorar Eostre e para propiciar as suas bênçãos também eram oferecidos sacrifícios vegetais, animais e humanos.1 Posteriormente, em louvor a Eostre, foi instituído o sabbat pagão, no primeiro dia da primavera, para se celebrar o renascimento da Natureza, chamado Ostara. O Cristianismo apóstata reinterpretou este dia, transferindo o seu significado para o domingo de Páscoa.
       Ao contrário da Páscoa bíblica, a Páscoa "cristã", como se celebra hoje em dia, não tem um dia fixo no calendário. Ela pode ocorrer entre os dias 22 de março e 25 de abril, pois, de acordo com a tradição, deve ser comemorada no primeiro domingo após a Lua cheia do início da primavera. Esta calendarização foi estabelecida no Concílio de Niceia, no ano 325, por forte influência do imperador romano Constantino, que pretendia assim diferenciar os Cristãos dos Judeus. No fundo, o objetivo do imperador era associar cada vez mais o Cristianismo ao paganismo, como no caso da transferência do dia de guarda semanal. Entretanto, a Cristandade só passou a comemorar unanimemente a Páscoa, segundo a resolução de Niceia, depois do decreto do papa Gregório XIII, em 1582. 2
       O que dissemos até aqui permite perceber a áurea pagã que permeia a Páscoa "cristã" na atualidade. A Cristandade reinterpretou a Páscoa, inserindo símbolos pagãos, alterando a sua data e deslocando o significado vicário que estava na base do propósito de Deus ao estabelecer essa festa. Este propósito era o de representar didaticamente o sacrifício substitutivo de Cristo, simbolizado no cordeiro que morreria com o propósito de que o seu sangue assinalasse a salvação do crente que se apega com fé à dádiva gratuita de Deus.


A PÁSCOA BÍBLICA


       A Páscoa bíblica foi estabelecida como marco para se comemorar a libertação do cativeiro egípcio. A prescrição divina estabeleceu que, na noite em que Deus desferiria o derradeiro golpe sobre o Egito, matando os primogénitos, quem estivesse ao abrigo do sangue do cordeiro colocado nos umbrais da porta seria poupado, pois o anjo destruidor passaria por aquela casa sem causar destruição. Naquela noite, todas as casas que não tinham o sangue nos umbrais da porta receberam a terrível visita do anjo destruidor. Mas as casas dos Hebreus foram poupadas, pois nelas havia o sinal de que o anjo deveria passá-las por alto. Assim, é do verbo hebreu que significa "passar sobre" que deriva a origem etimológica do termo Páscoa (em hebreu, Pessach).
       A Páscoa é uma bela representação da Salvação. Como escreve Ángel Manuel Rodríguez: "Enquanto no Egito todos os primogénitos morreram, entre os Hebreus uma vítima sacrificial morreu."3 Isto ensina-nos que a Salvação se encontra nos méritos substitutivos do sangue do Cordeiro. A Páscoa estava associada à décima praga e foi a causa que levou o Faraó a permitir a saída do povo de Israel do Egito. Nesse sentido, a Páscoa simboliza a nossa libertação do cativeiro do pecado.
       É interessante observar que esta festa foi instituída para representar a salvação de todo o povo de Israel, que sairia do Egito em consequência dos acontecimentos decorrentes daquela noite de visitação divina. Mas isso só seria possível, se o processo fosse realizado particularmente, no âmbito das famílias. Ou seja, para que todos fossem salvos e para que cada primogénito fosse poupado, cada família do povo deveria sacrificar um cordeiro. Não se tratava de um sacrifício generalizado, mas sim, de um sacrifício personalizado, familiar. Cada família deveria sentir a necessidade de buscar o Senhor: "Falai a toda a congregação de Israel, dizendo: Aos dez deste mês, cada um tomará para si um cordeiro, segundo a casa dos pais, um cordeiro para cada família" (Êxodo 12:3; itálico acrescentado).

       A Páscoa bíblica ensina que, embora a Salvação de Deus pretenda alcançar todos, ela deve ser vivida individualmente, e a família é o núcleo central a partir do qual o Senhor deseja projetar a Sua bênção sobre toda a Humanidade. Aquele cordeiro morto era um tipo de Jesus, "o cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo" (João 1:29). Entretanto, apenas aqueles que n'Ele crerem terão a vida eterna (João 3:16), a exemplo dos Hebreus, que só foram libertados do Egito porque creram na Palavra de Deus, sacrificaram o cordeiro e marcaram as suas portas.
       Sempre foi desejo de Deus que cada família fosse um centro de Salvação. Somente a partir de um reavivamento genuíno das famílias do povo de Deus, é que as pessoas, individualmente, poderão ser efetivamente tocadas, alcançadas. Por isso, torna-se evidente o motivo de Satanás trabalhar ardilosamente para destruir as famílias na atualidade. A vontade de Deus é proteger os lares da destruição causada pelo pecado que predomina no mundo de hoje. Cada pai, mãe, filho ou filha podem vencer, se tiverem, no coração, a marca do sangue de Jesus.


       Seguindo o rito realizado no dia da libertação do cativeiro, todos os Israelitas, ao festejarem a Páscoa, deveriam separar um cordeiro no décimo dia do primeiro mês do ano judaico (Nisã) e sacrificá-lo no décimo quarto dia à tarde (Êxodo 12:1-6). Os Evangelhos demonstram que Jesus cumpriu cabalmente todas as especificações tipológicas da Páscoa e, por isso, pôs fim à necessidade de a comemorarmos. Em memória do Seu sacrifício o Senhor estabeleceu a Santa Ceia que deve ser celebrada até que Ele volte (I Coríntios 11:26). "Ao comer a Páscoa com os Seus discípulos, instituiu em seu lugar o serviço que havia de comemorar o Seu grande sacrifício. A festa nacional dos Judeus devia cessar para sempre. O serviço que Cristo estabeleceu devia ser observado pelos Seus seguidores em todas as terras ao longo de todos os séculos."4
       Para o Cristão, a Páscoa é Cristo. Sempre que alguém aceitar o sacrifício vicário do Salvador, encontrará o verdadeiro sentido da Páscoa. E a cerimónia que Jesus instituiu para celebrar isto foi a Santa Ceia. Embora seja muito solene, esta ocasião é também uma ocasião festiva, pois o seu propósito é reavivar na memória do Cristão a certeza da Salvação. Ninguém deve excluir-se, nem deve ser impedido de participar.5  A Santa Ceia é o símbolo do perdão e da reconciliação.
       Mesmo que a Páscoa tenha sido substituída pela Ceia do Senhor, e ainda que esteja corrompida pelas influências do paganismo, a sua comemoração na atualidade é uma importante oportunidade de evangelização, pois as pessoas são levadas a pensar em Jesus nessa data. Assim, a Igreja deve aproveitar para ensinar o verdadeiro sentido desta festa e o seu cumprimento pleno em Cristo. O olhar das pessoas deve ser orientado para a Páscoa definitiva, que ocorrerá na Segunda Vinda de Jesus, quando Deus libertar completamente os Seus filhos do cativeiro do pecado.


      

A PÁSCOA ESCATOLÓGICA

       O evangelista João serviu-se do verdadeiro ícone pascal, o cordeiro, para falar da Salvação eterna. O último livro da Bíblia, Apocalipse, esboça um cenário em que o mundo vive os seus dias finais. O povo de Deus é perseguido, as pragas caem sobre os ímpios e o mundo natural é destruído. O quadro é tão caótico que, em Apocalipse 6:17, surge a pergunta: "Quem poderá subsistir?" A impressão com que ficamos é a de que todos estão condenados e ninguém conseguirá escapar da destruição. No entanto, surge em cena um grupo especial, que passa incólume pelos terríveis eventos finais da história do mundo. Essas pessoas estarão seladas (Apocalipse 7:3), não receberão o sinal da besta (Apocalipse 13:16) e marcarão os "umbrais" do seu coração com a obediência ao Cordeiro (Apocalipse 7:14; 14:4).

       Tal como na Páscoa original, o sangue do Cordeiro é a grande causa da vitória deste povo, a despeito da feroz perseguição que sofrerá. Estas pessoas são vividamente descritas como "os que vêm da grande tribulação, lavaram as suas vestiduras e as alvejaram no sangue do Cordeiro" (Apocalipse 7:14; itálico acrescentado). O sangue de Jesus livrará estes fiéis da destruição, mantê-los-á firmes na tribulação e introduzi-los-á na Canaã celestial.


       A Páscoa original marcou a saída do povo de Israel do Egito e o início da sua trajetória de quarenta anos pelo deserto até à Canaã terrestre. A Páscoa antitípica - a morte de Jesus na cruz - marca o início da caminhada dos Cristãos para a Canaã celestial. Na Páscoa original, a orientação foi: "Desta maneira o comereis: lombos cingidos, sandálias nos pés e cajado na mão; comê-lo-eis à pressa; é a Páscoa do Senhor" (Êxodo 12:11). O mesmo vale para a Páscoa definitiva. Devemos sentir urgência em seguir para Canaã e nos apropriarmos, com avidez, da "carne" e do "sangue" do Cordeiro, que alimentam a nossa vida espiritual, dando-nos força para prosseguir na jornada.


A propósito, esta situação evoca a antiga e poética pergunta: "Ainda é longe Canaã?" Sinceramente, NÃO!

       Canaã está às portas!


Vinícius Mendes
Editor-associado da Casa Publicadora Brasileira. Folheto editado em Portugal pela Publicadora SerVir

1. Mirela Faur, Mistérios Nórdicos, São Paulo: Editora Pensamento, 2007, p.134.
2. J. Lopez Marin, A Celebração na Igreja: Ritos e Tempos da Celebração, São Paulo: Edições Loyola, 2000, p.42.
3. Ángel Manuel Rodríguez, Israelite Festivals and the Christian Church, 2005, p.2, disponível em adventistbiblicalresearch.org/sites/default/files/pdf/release%203.pdf.
4. Ellen G. White, O Desejado de Todas as Nações, p.559, ed. P. SerVir.
5. Idem, p. 563.



- Pode ouvir músicas da Páscoa no último grupo dos links de Meditação para a Saúde e de Uma Palavra Amiga -

quinta-feira, 8 de março de 2018

*O que Seria do Mundo Sem as Queridas Mulheres?!!!...


CRÓNICA
António Lobo Antunes



PARAFUSOS E PORCAS

        Quando eu era miúdo, na periferia de Lisboa onde fui feito e onde cresci, um subúrbio pobre, havia um grupo de excursionistas chamado GRUPO EXCURCIONISTA OS PARAFUSOS, do qual faziam parte só homens, que passavam um domingo por mês num autocarro cheio de litros de tinto, partiam de manhã e regressavam ao fim da tarde, completamente grossos, a lutarem com a maré alta do passeio, a gritarem, a abraçarem-se, a rirem, a empurrarem-se, na panóplia completa dos bêbados, no meio de quedas, discussões, insultos e cantorias, dispersando-se aos tropeções, alguns de gatas, uns calmos, outros impetuosos, outros coléricos, alternando abraços com empurrões e juras de amizade eterna com tentativas de pancadaria, entre vómitos e tropeços. Conhecia-os mais ou menos a todos porque pertenciam ao mesmo bairro que eu, e a maior parte deles, nos intervalos das excursões, eram pacíficos e cordatos. Trabalhavam por ali, em oficinas e coisas assim, e depois do trabalho, antes do jantar, passavam pelo tasco da sede do Grupo para um copo fraterno, muitas vezes silencioso e soturno. Nas excursões não eram permitidas mulheres. Dos lados do autocarro havia dois lençóis estendidos, amarrados com cordas, anunciando
        GRUPO EXCURSIONISTA OS PARAFUSOS
        por baixo do
        GRUPO EXCURSIONISTA OS PARAFUSOS
        a frase, em letras gordas
        AS PORCAS FICARAM EM CASA
        e, de facto, não se via uma só porca nas redondezas, parafusos apenas, às palmadas nas costas uns dos outros, felizes pelos delirium tremens que se aproximavam, transportando a alegria em garrafões, ainda pausados e calmos. Meia dúzia de porcas, inquietas, vigiavam a partida de longe, na certeza de uma noite tempestuosa, escondendo santinhos e bonecos de barro nos quintaizecos das traseiras porque, dali a horas, viria um temporal de cacos, cuja violência era celebrada durante dias, com frases de felicidade no género
        - Grande domingo: apanhámos cá uma bebedeira...
        isto dito, claro, com orgulho e natural satisfação, mudando de conversa a fim de cumprimentarem, com solenidade, as senhoras que passavam, tirando o boné numa educação lenta, já de alma apontada ao próximo passeio.
O autocarro, quase podre, andava uns quilómetros, poucos, na direção de uma berma propícia, e gastavam o dia aos encontrões, a mamarem dos gargalos, enquanto as porcas escondiam bibelôs, retratos e mobília mais frágil. Partiam de gravata e casaco e regressavam de fralda da camisa de fora, com a gravata amarrotada no bolso, ao mesmo tempo joviais e comovidos, até as porcas os pastorearem para casa a tropeçarem nos próprios sapatos. À medida que os tempos iam mudando e os parafusos envelhecendo
        (começaram a aparecer bengalas, muletas, bocas tortas, um bracinho defunto, uma perna que se arrastava, as primeiras mortes
        - os fígados gastam-se, amigos)
        o GRUPO EXCURCIONISTA OS PARAFUSOS deu em diminuir e as porcas, mais resistentes, a ganharem força. A frase, em letras gordas
        AS PORCAS FICARAM EM CASA
        desapareceu dos lençóis, e as ditas porcas começaram a acompanhá-los nas excursões de domingo onde havia agora água mineral e almofadas para os rabos cansados dos parafusos que já não discutiam, não se abraçavam, não riam, acocorados em pedras à beira da estrada, enquanto as porcas conversavam umas com as outras e lhes davam ordens, transformando vinho em água-pé primeiro e confiscando-o finalmente, atentas às queixas
        - Mijei-me todo
        ou
        - Não consigo segurar as fezes
        equilibrando-os com dificuldade e uma página de jornal na mão, a puxá-los
        - Anda lá, anda lá
        para trás de uns arbustos, nos quais se distinguia uma cabeça vencida.
O autocarro acabou, sem pompa, num baldio do bairro, os domingos terminaram, e os parafusos principiaram a permanecer no bairro, em banquitos ao acaso, com boinas coçadas a cobrirem as calvícies, e as bocas desmobiladas a chuparem cigarrinhos meio apagados. Elas levavam-nos para casa equilibrando-lhes os sovacos
        - Mexe-te, emplastro
        e agarrando-os pelas calças que amoleciam. Quando me tornei adolescente já poucos sobravam, sem diálogos, sem interesses, sem júbilo algum, a engolirem os comprimidos que elas lhes estendiam numa obediência mansa. No caso de um deles perguntar
        - O Jorge?
        uma voz respondia
        - Morreu o ano passado
        e o queixo do que perguntava descaía um bocado, numa aceitação melancólica. As porcas, essas, iam aumentando de autoridade
        - Estás cada vez mais um farrapo
        e o GRUPO EXCURSIONISTA OS PARAFUSOS dissolveu-se, substituído, progressivamente, por idosas enérgicas, a quem eles se submetiam num cansaço desarticulado. Deviam trocar-se os letreiros por cartazes que anunciassem
        GRUPO EXCURCIONISTA AS PORCAS
        com outro por baixo
        OS PARAFUSOS ESTÃO QUASE TODOS NO CEMITÉRIO
        enquanto elas faziam crochet no murozito da estrada, a contarem histórias dos netos, que os parafusos sobreviventes nem escutavam. Talvez, quando muito
        - O Jorge morreu mesmo?
        seguido de um chichi desolado pelas tíbias abaixo, um lamento de mulher
        - O que eu aturo
        o que os dois ou três parafusos que resistiam já nem conseguiam ouvir. O tasco é agora uma butique que vende roupa feminina a pessoas para quem os parafusos não significam nada.

Texto EXCELENTE do Escritor e Médico Psiquiatra Dr António Lobo Antunes in Revista Visão, 2 de abril de 2015.
*O Título da postagem é meu, não resisti... Mas o que seria do Mundo sem os Maravilhosos Homens?!!! Mas SEM o álcool, por favor! Era o MELHOR presente para todos. Sou muito feliz por ter um marido que não fuma nem bebe bebidas alcoólicas! E ele é também muito feliz! Quanto a Saúde das PESSOAS, e o ESTADO, beneficiariam!!!... EE



sexta-feira, 2 de março de 2018


ARTIGO DE OPINIÃO
                 Artes

SER MÉDICO, SER ARTISTA

A Medicina tem-se revelado fonte inspiradora de várias artes: Literatura, Pintura, Escultura... Quantos médicos sentiram necessidade de se perder entre rasgos de imaginação depois de despirem a bata. O legado é extenso.
Por Professor Doutor Armando Moreno

       As relações entre os médicos e a sociedade situam-se nas mais variadas áreas das actividades humanas e podem ser ilustradas por meio de diversificados processos e realizações: clínica, investigação, caridade, arte, pedagogia, divulgação, política, filosofia, desporto, história. Todos estes meios têm sido utilizados pelos médicos enquanto profissionais ou, noutros casos, como actividades colaterais. O palco de clivagem entre cada uma destas formas, enquanto colaterais ou enquanto profissionais, nem sempre é bem definido pois não podemos imaginar a obra de Abel Salazar sem a sua formação médica, nem os escritos de João de Araújo Correia sem a sua prática clínica. Vale a pena relembrar todas estas actividades? Se vale, com que finalidade?
       Sempre tenho afirmado que não sou historiador mas "historiólogo": a História interessa-me, essencialmente, para tirar conclusões para a vida moderna. Nem sempre estas comparações são claras ou patentes. No último Congresso de Medicina da Ordem dos Médicos, realizado em Coimbra, sobressaiu uma tónica: a importância das novas tecnologias e os desvios que a Medicina iria sofrer em função dessas tecnologias. As abordagens assumiram tons de alarmismo, como se a Medicina estivesse prestes a sofrer um ataque de marcianos.
       Como os marcianos, essas tecnologias surgem, aos olhos de uns, os mais antigos, como monstros desconhecidos, para outros, os mais novos, como resultado de pesquisas científicas de resultados nunca antes vistos. Ora a História ensina que as novas tecnologias surgiram ao longo dos séculos, provavelmente de modo muito mais importante do que as que surgem nos nossos dias: o que pensariam os médicos de então quando Leeuwenhoek, depois de inventar o microscópio, lhes disse que na boca existem bichinhos que aí se reproduzem? Quando Lister iniciou a prática da vacinação, dizia-se que os vacinados mugiam como vacas e que nasciam cornos no local da vacinação. Embora estas novidades tivessem um impacto estrondoso, a Medicina seguiu naturalmente o seu caminho.
       É certo que o médico se encontra cada vez mais absorvido pelas actividades diárias, canalizado por um ensino cada vez mais tecnológico e menos humanista. Na maioria, os médicos nem se dão pela importância que as lições da História assumem na actividade clínica. Aos poucos, a preparação em áreas da Psicologia, da Sociologia, da relação afectiva são desmembradas e constituem cursos de especialidade, porque o médico deixou de ter tempo para essas actividades que eram, não há muito, a raiz da sua relação com os doentes.
       Felizmente, muitos cavaleiros andantes reservam-se o direito de manter essas actividades na vida clínica. Vivemos, realmente, um período fulcral e decisivo da reorganização hospitalar a merecer uma profunda meditação, a substituir o deixa correr que tem presidido ao desenrolar dos acontecimentos. Como Director de uma Escola Superior de Saúde em que estas profissões são ensinadas, preocupo-me especialmente com esta nova ocorrência e a comparação com as lições da História tem sido de elevada ajuda na clarificação destes aspectos. Por isso me interesso por conhecer as actividades que os médicos desenvolvem ao longo dos séculos, no primado da Filosofia, da Política, do Desporto, das Artes.

A Liberalização das Profissões

       Uma das grandes mudanças no hábito hospitalar reside na emergência de novos cursos, de profissões mais ou menos antigas elevadas agora à categoria de bacharelatos e de licenciaturas. É uma realidade imparável de que muitos médicos não têm ainda consciência. Mas a História tem uma importante palavra a dizer.
       Embora hoje se possa entender que o exercício da cirurgia é constituído em 75% pelo diagnóstico e adequação da terapêutica e só 25% pertencem à técnica cirúrgica, nem sempre assim foi. Durante séculos, a cirurgia era praticada por barbeiros, que acumulavam com as profissões de dentista e de sangrador. O diagnóstico e a terapêutica a seguir estavam entregues aos médicos. Assim em Portugal, como em toda a Europa. O cirurgião era, por natureza, um técnico, um indivíduo desprezado porque a sua profissão era executada com as mãos (do grego cheirus - mão) e, como é sabido, os nobres não gostavam do trabalho braçal (neste caso manual). Daí que os profissionais de Medicina, entendidos como os nobres da Saúde, porque formados pela universidade, não se rebaixassem a fazer Cirurgia. Acresce que, durante séculos, o médico usava trajes de rendas e brocados que seriam conspurcados no acto cirúrgico.
       Aos poucos, a cirurgia foi tomando volume, experimentando técnicas, saiu da sua condição de secundária e o cirurgião passou a ser considerado par do médico. Foi a emancipação, o desapego à subalternidade, a especialização que lhe deram o desenvolvimento para ascender à categoria semelhante à do médico. E não foram os médicos que abriram as portas, mas os cirurgiões que as forçaram.
       Transportemos este raciocínio para as actuais novas profissões ditas tecnológicas, como é o caso do enfermeiro, do técnico de radiologia, de cardiopneumologia. Em primeiro lugar, é um erro considerá-las na área exclusiva das tecnologias. Se a Medicina é uma das ciências mais ligadas ao humanismo, não se veem em que a Enfermagem o seja menos. Em segundo lugar, desejam os médicos que na sua equipa de trabalho os enfermeiros sejam competentes. Em terceiro lugar, vai ser a capacidade se seguir um estudo próprio, a especialização liberta de preconceitos, a sua formação científica, que vai permitir à Enfermagem atingir o grau de excelência que lhe foi negada durante séculos, utilizando os seus serviços apenas para trabalhos braçais ou de assistência e caridade. É a mesma História que aponta o caminho. Custa mudar as mentalidades, estamos habituados a entender que mesmo na assistência aos doentes existem hierarquias de valor, mas um enfermeiro mal apetrechado pode dar origem a um erro tão fatal à cabeceira do doente, quanto o médico. Numa sala de operações inglesa ou americana, a instrumentista é a responsável pela manutenção da higiene e esterilização e não há hierarquia médica que se sobreponha a isso. A posição ancestral a que estamos habituados, quer se queira quer não, tem os dias contados. É necessário olhar para a situação sem preconceitos, dando uma nova organização às equipas de trabalho, em que cada um tenha um lugar definido, com base na competência. Esboçar ou encetar um antagonismo entre quem deve colaborar é uma atitude negativa e de más consequências. É certo que, no final, a quem se pedem responsabilidades é ao médico, porque é nele que o doente confia. Mas se um doente tiver um desfecho fatal porque o enfermeiro trocou as embalagens, o médico pede responsabilidades ao enfermeiro. Só que, para ele ser responsável, tem de ter adequadas condições de aprendizado. Todos com os olhos postos no doente.

Vestígios da Profissão nas Artes

       É curioso observar que as obras artísticas de médicos abordam com raridade os temas da sua profissão. Os primeiros poemas escritos por médicos que chegaram até nós são dedicados ao Saber, ao estudo, ao conhecimento. João Pinto Delgado deixou uma colecção que merece leitura. Assinale-se ainda a contribuição valiosa de Estevão Rodrigues de Castro e Domingos Pereira Bracamonte. Este deixou uma série interessante de poemas relacionados com a dietética. Mas temos de procurar com afinco para encontrar textos de verdadeiro cariz médico mormente temas sociais ligados à Medicina. A enorme contribuição dos médicos avantaja-se em temas gerais de referência literária, seja na poesia, no conto, no romance e mesmo no ensaio literário.
       É certo que podemos entender que Rodrigues Castelo Branco, Amato Lusitano, deixou, nas suas Centúrias, saborosos textos de carácter prático, por onde se podem vislumbrar aspectos da relação social entre médicos e doentes. Também outro médico, Mestre Afonso, dedicou alguns fragmentos na sua viagem através de África, a aspectos médicos muito escassos. Mas foi necessário aguardar até ao século XIX para Júlio Dinis e, já no Século XX, Fernando Namora, nos darem figuras e cenas carregadas de características médicas, com pinceladas firmes e caracterizações notáveis. A figura do João Semana está hoje tão viva como quando foi criada, bem como as cenas jocosas em que tomou lugar. Estou a lembrar-me da história da Última Ceia, n'A Morgadinha dos Canaviais ou a visita do João Semana à aldeia. Vale a pena desenterrar os seus velhos livros do pó do tempo e reler estas passagens.
       No campo da Pintura, o cenário é semelhante. Surgem temas médicos com alguma raridade: merecem referência os trabalhos de natureza psíquica legados por Mário Botas, com vários quadros, como as Máscaras, a evolução fetal de Tropa de Sousa, no quadro a que deu o nome de Mórula, o desenho de Miguel Salazar com o seu Voando sobre um Ninho de Cucos, ou o trabalho desse notável pintor e poeta que é Cabral Adão, com projecção internacional.
       Tratado o aspecto fulcral da actividade dos médicos em áreas tão diversas, vejamos agora o inverso: o interesse que os problemas médicos têm despertado em artistas não médicos, pintores, escultores, escritores, poetas. Passando rapidamente os nomes de Cornan Doyle, o célebre criador de Scherlok Holmes, de Axel Munthe, escritor que nos deixou o belo livro de S. Michele, de Chekov, criador de personagens inesquecíveis, foquemos os artistas portugueses, numa breve passagem, por ser impossível, em tão curto espaço de tempo, referir o que, por direito, merece horas de observação, estudo e encantamento.
       São famosos os frescos de Veloso Salgado, da Faculdade de Ciências Médicas de Lisboa e Malhoa deixou-nos, entre outros, um magnífico quadro a que chamou O Remédio, que se exibe no Museu Nacional de Soares dos Reis, no Porto. Lá está estampada a ansiedade da mulher, filha, esposa ou mãe, com a garrafa do remédio sob o braço, em busca da salvação do seu ente querido. Eça de Queiroz deixou registado, n'O Primo Bazílio, a influência das cunhas no provimento das vagas de médicos, e David Mourão Ferreira, n'Um Amor Feliz foca a moda tão divulgada dos congressos, a caracterizar a Medicina dos nossos dias. Estas e outras obras devem merecer por parte dos médicos, um pouco, um mínimo de atenção.
       Neste breve resumo, é possível retirar algumas importantes conclusões. Dos trabalhos de Arte, Filosofia, Sociologia, enfim, da autoria de médicos pode concluir-se que a profissão tem dado ao país vultos dos mais destacados em cada uma destas áreas: o gigante Miguel Torga; António José de Almeida, Presidente da República; António Augusto da Silva Martins, pai do Dr. Gentil Martins, que todos conhecemos, considerado ainda hoje o atleta português mais completo, vítima de uma explosão da arma com que competia nos Jogos Olímpicos em idade precoce, são apenas alguns nomes a referir.
       No campo da Literatura, é possível caracterizar as várias fases da História da Literatura Portuguesa só com obras de médicos. Reconhece-se também que foram médicos os pioneiros de certos tipos de Literatura. Tal é o caso de Rodrigo Paganino, criador desse pequeno livro Os Contos do Tio Joaquim que iniciou a investida do conto literário em Portugal após três séculos de silêncio e foi também esta obra o rastilho para o tipo de escrita rural que outro médico, de pseudónimo Júlio Dinis, tão bem soube desenvolver.
       Do trabalho dos artistas não médicos, mas que dedicaram parte das suas actividades à Medicina podemos resumir o seguinte: as obras que legaram, sobretudo na Literatura e na Pintura, são o espelho da vida médica das épocas que referem. Na Escultura deixaram, sobretudo, bustos ou estátuas de médicos. Toda esta caracterização constitui um elemento de estudo e lição para os tempos modernos. Daí a importância da Historiologia. A título de exemplo, refiro um poema de João de Deus que caracteriza os hábitos sanitários da população portuguesa do seu tempo.

Mal de pés

Certo patrício nosso brasileiro,
Depois de ter corrido o mundo inteiro
Ao voltar de Paris desenganado
Dos médicos, que tinha consultado,
Achou-se num wagon com um inglês.
O desgraçado tinha mal de pés...
E a última palavra da ciência
Era ir vivendo e tendo paciência!

Mostrou-se o bife incomodado,
Fungando para um e outro lado...
Como quem busca o foco de infecção;
Diz-lhe o nosso infeliz compatriota,
A apontar-lhe com o dedo a bota
E exalando um suspiro de paixão:
— Eis a causa, senhor, eis o motivo!...
O que eu não sei é como ainda vivo!

Tenho gasto rios de dinheiro,
E sempre, sempre, sempre o mesmo cheiro!
E isto por ora vá!... mas alto dia
Quando aperta o calor... Virgem Maria!1...

"E diga-me: em lavando os pés refina,
Ou sente algum alívio?"
— Isso não sei,
Sei que tenho exaurido a medicina;
Mas lavar é que nunca experimentei.

Às vezes dá-se ao médico o dinheiro
Que se devia dar ao aguadeiro*.

in Campo de Flores, Satíricas e Epigramas.

1Expressão sem suporte bíblico... mas era o que ensinavam ao povo. EE
*Homem que no século XIX vendia água e carregava os respectivos potes até à morada do cliente.


Texto retirado da Revista da Ordem dos Médicos - Abril/Junho 2001