terça-feira, 12 de dezembro de 2017

A Infância e Juventude de Jesus


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          Prefácio
          A história da vida terrestre de nosso Salvador Jesus Cristo encontra-se escrita, sem o auxílio de palavras, em cada manifestação da natureza, em cada aspecto da experiência humana e em cada facto da vida. Nunca havemos de compreender cabalmente quão profunda foi a impressão e quão extensa a influência exercidas pela vida de Jesus de Nazaré. Toda a sorte de bênçãos vem até nós por meio daquela comunicação que foi estabelecida entre o Céu e a Terra quando o Senhor da glória tomou sobre Si o cuidado de um mundo abismado em pecados.
          A sublimidade infinita daquela história animou a pena dos eruditos e a língua dos eloquentes. Soa, porém, ainda melhor aos nossos ouvidos numa linguagem despretensiosa e singela. Aquele maravilhoso espectáculo não carece de um aformoseamento por parte do homem. A sua glória excede toda a arte humana e parece mais radiante no seu próprio brilho.
          Neste livrinho não se procurou por isso qualquer ornamento artificial. Dotada de um perfeito sentimento da profundeza e amplitude do assunto, a autora repetiu a história numa linguagem acessível às crianças, com uma simplicidade e lhaneza que corresponde tanto às necessidades da alma de novos como de velhos.
          Oxalá este pequeno livro seja recebido pelos seus leitores com a mesma simplicidade e pureza de fé com que foi escrito.

                                                                                                                                                                OS EDITORES

          O Nascimento de Jesus
          Aninhada entre as colinas da Galileia meridional, está situada a pequena cidade de Nazaré, residência de José e Maria, os pais terrestres de Jesus. José era da descendência ou linhagem de David, pelo que se tornou necessário, ao ser decretado o recenseamento do mundo por parte de César Augusto, que José se dirigisse a Belém, cidade natal do grande rei, a fim de ali fazer inscrever o seu nome.
          Era esta uma viagem extremamente penosa, atendendo-se sobretudo ao modo como tais viagens eram então efetuadas, e Maria, que acompanhava seu esposo, estava em extremo fatigada ao subir a colina em cujo cimo se encontra Belém. Como ansiava sua alma encontrar um sítio confortável em que pudesse descansar das suas fadigas! Repletos, porém, os albergues, em que os grandes e abastados se achavam confortavelmente alojados, não restava aos modestos viajantes senão humilde agasalho sob o teto de escura estrebaria.
          Não se podiam dizer pobres, porque, embora lhes escasseassem bens terrestres, Deus os amava, e isto lhes proporcionava paz e contentamento. Eram filhos do celeste Rei que estava disposto a honrá-los acima de todas as Suas criaturas. Anjos tinham-lhes dispensado o seu cuidado durante a viagem, e quando começaram a repousar na humilde estalagem esses mesmos anjos velavam junto dos seus leitos. Foi aqui, neste vil tugúrio, que nasceu o Salvador do mundo, sendo deitado numa manjedoura. Nesse rude berço jazia reclinado Aquele cuja presença ainda há pouco havia inundado de glória os paços celestiais. Ali fora adorado pelos anjos, aqui tinha os brutos animais por companheiros. A inferioridade do sítio, porém, não podia influir em detrimento da Sua honra; antes esse mesmo sítio devia receber d'Ele uma glória que havia de perdurar enquanto fosse lembrado o nome de Belém.
          Antes de baixar à Terra, Jesus era o supremo Chefe das cortes celestiais. Os mais lúcidos e eminentes filhos da alva proclamaram a Sua glória ao realizar a criação de Deus. Diante d'Ele velaram as faces quando tomou assento sobre o Seu trono. A Seus pés rolaram humildes os seus diademas, entoando hinos de triunfo, ao contemplarem a Sua excelsa majestade.
          E esse mesmo Ente, apesar da Sua infinita glória, a tal ponto amou os pecadores que tomou a forma de servo para que pudesse sofrer e morrer por eles. Jesus podia ter-Se deixado ficar ao lado do Pai, cingindo o diadema de ouro e as púrpuras reais, mas por nosso amor permutou as glórias do Céu pelas vilezas e misérias da terra.
          Consentiu em abandonar a Sua posição de supremo Chefe e a adoração dos entes celestiais, para sofrer injúrias e expor-se à irrisão de homens ímpios. Por nosso amor aceitou uma vida de trabalhos e sujeitou-Se a uma ignominiosa morte. E tudo isto fez a fim de nos mostrar quanto Deus nos ama. Viveu sobre a terra para nos ensinar como é possível glorificar a Deus por uma submissão plena à Sua vontade. Seguindo o exemplo que nos deixou, ser-nos-á permitido finalmente habitar com Ele nas moradas eternas.
          Os sacerdotes e príncipes do povo judaico não estavam preparados para saudar o Salvador do mundo. Embora acreditassem que Ele estava prestes a manifestar-Se, pensavam todavia que devia aparecer como um grande rei capaz de torná-los uma nação próspera e poderosa. O seu orgulho de modo algum lhes teria permitido reconhecer naquele débil menino de peito o Messias prometido. Por isso, quando Cristo nasceu sobre a terra, Deus absteve-Se de revelá-l'O àqueles grandes homens, enviando os Seus mensageiros a dar a alegre nova a alguns pastores que se ocupavam a apascentar rebanhos nas planícies de Belém. Estes eram homens piedosos que, cuidando dos seus rebanhos, meditavam sobre a promessa do Messias, e com tal fervor oravam a Deus pela Sua vinda, que do trono da glória luminosos mensageiros lhes foram enviados com a incumbência de lhes comunicar o grande acontecimento.
          «E eis que o anjo do Senhor veio sobre eles, e a glória do Senhor os cercou de resplendor, e tiveram grande temor. E o anjo lhes disse: Não temais, porque eis aqui vos trago novas de grande alegria, que será para todo o povo; pois, na cidade de David, vos nasceu hoje o Salvador, que é Cristo, o Senhor. E isto vos será por sinal: Achareis o Menino envolto em panos, e deitado numa manjedoura. E, no mesmo instante, apareceu com o anjo uma multidão dos exércitos celestiais, louvando a Deus, e dizendo: Glória a Deus nas alturas, paz na terra, boa vontade para com os homens. E aconteceu que, ausentando-se deles os anjos para o céu, disseram os pastores uns aos outros: Vamos pois até Belém, e vejamos isto que aconteceu, e que o Senhor nos fez saber. E foram apressados, e acharam Maria, e José, e o Menino deitado na manjedoura. E, vendo-O, divulgaram a palavra que acerca do Menino lhes fora dita. E todos os que a ouviram se maravilharam do que os pastores lhes diziam. Mas Maria guardava todas estas coisas, conferindo-as em seu coração». S. Lucas 2:9-19.

          A Apresentação de Jesus no Templo
          José e Maria eram de descendência judaica, pelo que observavam os costumes dessa nação. Tendo Jesus a idade de seis semanas, foi apresentado ao Senhor, no templo, em Jerusalém. Fundava-se essa prática numa lei que Deus havia dado a Israel, e Jesus não devia eximir-se às exigências dessa lei. Ele, o Filho de Deus e Príncipe do Céu, devia proclamar pelo exemplo o dever da obediência.
          Essa apresentação no templo só se limitava aos primogénitos, e tinha por fim comemorar um acontecimento ocorrido num longínquo passado. Quando os filhos de Israel gemiam na servidão do Egito, Deus enviou-lhes Moisés para os libertar. Moisés recebeu a ordem de dirigir-se a Faraó e de lhes falar nestes termos: «Assim diz o Senhor: Israel é Meu Filho, Meu primogénito. ... Deixa ir o Meu filho, para que Me sirva; mas tu recusaste deixá-lo ir; eis que Eu matarei a teu filho, o teu primogénito». Êxodo 4:22, 23. Moisés levou ao rei essa mensagem; este, porém, respondeu-lhe: «Quem é o Senhor, cuja voz eu ouvirei, para deixar ir Israel? Não conheço o Senhor, nem tão pouco deixarei ir Israel». Êxodo 5:2.
          Enviou então o Senhor pragas sobre o Egipto, a última das quais consistiu na morte do primogénito de cada família, desde o do rei até ao do mais humilde operário. Falou pois o Senhor a Moisés ordenando que cada família degolasse um cordeiro, pondo parte do seu sangue sobre ambas as umbreiras e a verga das suas portas. Esta precaução devia ser tomada para que o anjo exterminador passasse por alto as suas habitações, ferindo somente os cruéis e orgulhosos egípcios. O sangue desse cordeiro, que era também denominado «páscoa», simbolizava o sangue de Cristo que, a seu tempo, Deus havia de enviar ao mundo para do mesmo modo ser morto pelos nossos pecados, para que todo aquele que n'Ele cresse fosse salvo da morte eterna. Cristo é chamado a «nossa Páscoa». Ele foi oferecido por nós «desde a fundação do mundo». I Coríntios 5:7.
          Na apresentação do seu primogénito ao Senhor cada família devia lembrar-se de como os filhos dos seus pais tinham sido salvos da praga, e de como todos podem ser salvos do pecado e da morte eterna. Efésios 1:4. Cada menino apresentado no templo era pelo sacerdote tomado nos braços e assim solenemente dedicado ao Senhor, sendo o seu nome inscrito no rolo ou livro que continha os nomes dos primogénitos de Israel. Do mesmo modo todos os que são salvos pelo sangue de Cristo terão os seus nomes inscritos no livro da vida.
          José e Maria levaram Jesus ao sacerdote em obediência à lei. Todos os dias iam pais fazer a apresentação dos seus primogénitos, pelo que o sacerdote nenhuma particularidade notou em Jesus e Maria. Para ele eram simples trabalhadores da Galileia. No Menino reconheceu apenas uma frágil criança de peito. Longe estava de adivinhar n'Ele o Salvador do mundo, o Sacerdote do santuário celestial. Entretanto podia tê-lo sabido: se tivesse estado em boas relações com Deus, Ele lho teria revelado.
          Achavam-se nessa mesma ocasião no templo dois fiéis ministros de Deus. Servos encanecidos no serviço do Senhor, gozavam da Sua particular estima, sendo-lhes reveladas coisas que aos orgulhosos sacerdotes não era dado saber. Simeão fora agraciado com a promessa de que não morreria sem ver o Messias. E apenas O avistou no templo, reconheceu n'Ele o Ungido do Senhor. Iluminava o rosto de Jesus uma luz suave e divina, e Simeão, tomando-O nos braços, louvou a Deus, dizendo: «Agora, Senhor, despede em paz o Teu servo, segundo a Tua palavra. Pois já os meus olhos viram a Tua salvação, a qual Tu preparaste perante a face de todos os povos; luz para alumiar as nações e para glória do Teu povo Israel». S. Lucas 2:29-32.
          Ana, a profetisa, era mulher de idade avançada. «E era viúva, de quase oitenta e quatro anos, e não se afastava do templo, servindo a Deus em jejuns e orações de noite e de dia. E sobrevindo na mesma hora, ela dava graças a Deus, e falava n'Ele a todos os que esperavam a redenção de Jerusalém». S. Lucas 2:37-38. É assim que Deus escolhe os humildes desta terra para serem Suas testemunhas. Muitas vezes os que o mundo tem em grande estima são passados por alto. Não poucos se assemelham aos sacerdotes e príncipes dos judeus. Quantos há que estão prontos para se servir e honrar a si próprios, mas que mal pensam em servir e honrar a Deus! Por isso Deus não pode servir-Se de tais pessoas para anunciar a outros o Seu amor e misericórdia.
          Maria, mãe de Jesus, ponderava em silêncio a profecia altamente significativa que ouvira a Simeão. Olhando para o menino que sustinha em seus braços, e recordando o que lhe haviam dito os pastores de Belém, o seu coração transbordava de grata alegria e de viva esperança. As palavras de Simeão traziam à sua memória a profecia de Isaías. Sabia que era a Jesus que se referiam estas maravilhosas palavras: «O povo que andava em trevas viu uma grande luz, e sobre os que habitavam na região da sombra da morte resplandeceu a luz. Porque um Menino se nos nasceu, um Filho se nos deu; e o principado está sobre os Seus ombros; e o Seu nome será: Maravilhoso, Conselheiro, Deus Forte, Pai da eternidade, Príncipe da paz». Isaías 9:2, 6.

      

          A Visita dos Magos
          Não era a vontade de Deus que o Seu povo estivesse em ignorância no que respeitava à vinda do Seu Filho a este mundo. Aos sacerdotes incumbia admoestar o povo e aguardar o seu Salvador; porém eles próprios estavam em trevas a respeito do Seu advento. Por isso enviou Deus os Seus anjos a anunciar a uns pastores que Cristo nascera em Belém, e a informá-los do lugar onde seria encontrado. Assim tinha Deus prevenido também as Suas testemunhas quando Cristo foi apresentado no templo. Preservara a vida àqueles dois servos até que lhes fosse dado testemunhar, com alegria, que Jesus era o Cristo, o Messias prometido.
          Era o desígnio de Deus que não só os judeus, mas também outros, tivessem conhecimento do advento de Cristo a esta terra. No longínquo Oriente havia uns sábios que tinham estudado as profecias referentes ao Messias, e que acreditavam que o Seu aparecimento estava próximo. Os judeus consideravam estes homens como pagãos; eles, porém, não eram idólatras. Eram homens sinceros que desejavam conhecer a verdade e fazer a vontade de Deus.
          Deus vê o coração. Sabia que eram pessoas sob todos os aspectos dignas da Sua confiança, e que estavam em melhores condições de receber a luz da verdade do que os presumidos sacerdotes judeus. Esses homens eram filósofos, que tinham estudado as obras de Deus na natureza e por elas aprendido a amá-l'O. Estudavam os astros e conheciam os seus movimentos. Nas horas caladas da noite observavam os extensos percursos que descreviam. Se sucedia descobrirem um novo, desconhecido ainda, saudavam isso como um grande acontecimento.
          Na noite em que os anjos vieram ter com os pastores de Belém, esses homens sábios notaram uma estranha luz no céu. Era a glória que se reflectia desse grupo de anjos. Quando aquela luz se dissipou pareceu-lhes ter visto no céu uma nova estrela. Imediatamente se lembraram da profecia que diz: «Uma estrela procederá de Jacob, e um ceptro subirá de Israel». Seria essa estrela o sinal do Messias prometido? Resolveram acompanhá-la, a ver para onde os guiaria. Conduziu-os à Judeia. Mas, ao aproximarem-se de Jerusalém, a estrela eclipsou-se de tal maneira que já não era possível segui-la.
          Supondo que os judeus pudessem informar onde se achava o Messias, entraram em Jerusalém, e perguntaram: «Onde está aquele que é nascido Rei dos judeus? Porque vimos a Sua estrela no Oriente, e viemos adorá-l'O». Esta nova inquietou Herodes. Não era lisonjeira a notícia de um rei dos judeus que, provavelmente, lhe vinha disputar o governo e reger a nação. Por isso chamou secretamente os magos, e inquiriu deles com todo o cuidado, que tempo havia que lhes aparecera a estrela.
          «E enviando-os a Belém, disse: Ide, e perguntai diligentemente pelo Menino e, quando O achardes, participai-mo, para que também eu vá e O adore. E, tendo eles ouvido o rei, partiram; e eis que a estrela, que tinham visto no Oriente, ia adiante deles, até que, chegando, se deteve sobre o lugar onde estava o menino. E, vendo eles a estrela, alegraram-se muito com grande alegria. E, entrando na casa, acharam o menino com Maria, Sua mãe e, prostrando-se, O adoraram; e, abrindo os seus tesouros, Lhe ofertaram dádivas: ouro, incenso e mirra». S. Mateus 2:2-11. Estes homens ofereceram a Jesus das coisas mais preciosas que possuíam. Nisto deram-nos um exemplo. Muitos oferecem presentes aos seus amigos terrestres, mas não têm nada para dar a Jesus, o seu Amigo do Céu, que os cumula de todas as bênçãos. Não devia ser assim. Devíamos dedicar a Ele o melhor do que possuímos, o melhor do nosso tempo, dos nossos recursos e do nosso amor. Podemos também oferecer-Lhe as nossas dádivas confortando os pobres e anunciando aos pecadores o Salvador. Deste modo podemos ajudar a salvar aqueles por quem Ele morreu. Estas são as dádivas que Jesus aceita e abençoa.

          A Fuga Para o Egipto
          Herodes não foi sincero quando manifestou o desejo de ir também adorar a Jesus. O seu receio era que o Salvador prosperasse e por fim lhe tomasse o reino. Assim reflectindo, procurou obter informações exactas a Seu respeito, para O poder matar.
          Preparavam-se, pois, os magos para voltar a Herodes e comunicar-lhe o ocorrido, quando um anjo do Senhor lhes apareceu em sonhos, ordenando-lhes que voltassem por outro caminho ao seu país natal. «E, tendo-se eles retirado, eis que o anjo do Senhor apareceu a José em sonhos, dizendo: Levanta-te, e toma o Menino e Sua mãe, e foge para o Egipto, e demora-te lá até que eu te diga; porque Herodes há-de procurar o Menino para O matar». S. Mateus 2:13. José não esperou pelo romper da alva, mas, levantando-se imediatamente, na mesma noite iniciou a viagem para o Egipto. Nos presentes oferecidos pelos magos providenciou Deus os meios de ocorrer às despesas de viagem e de permanência no Egipto até que pudessem tornar ao seu país.
          Vendo Herodes que tinha sido iludido, tendo os magos voltado por outro caminho, irou-se em extremo e, enviando os seus rudes soldados, «mandou matar todos os meninos que havia em Belém e em todos os seus contornos, de dois anos para baixo, segundo o tempo que diligentemente inquirira dos magos». É coisa bem singular um homem insurgir-se deste modo contra Deus. Quão horroroso não deve ter sido aquele bárbaro infanticídio! Herodes já tinha praticado actos cruéis sem que Deus por isso lhe houvesse aplicado o justo castigo; agora, porém, não devia viver por muito mais tempo nem continuar a perpetrar mais crimes: morreu pouco depois, de uma morte violenta e pavorosa.
          José e Maria permaneceram no Egipto até à morte de Herodes. Apareceu então o anjo do Senhor a José e disse-lhe: «Levanta-te, e toma o Menino e Sua mãe, e vai para a terra de Israel; porque já estão mortos os que procuravam a morte do Menino». S. Mateus 2:16, 20. Estando eles já perto da Judeia, soube José que o filho de Herodes estava reinando em lugar de seu pai, pelo que ficou receoso, não podendo decidir-se a prosseguir. Enviou, pois, Deus um anjo para instruí-lo. De acordo com as instruções recebidas, José e Maria voltaram para Nazaré, onde se detiveram até que «Jesus começava a ser de trinta anos», e Jesus era-lhes em tudo sujeito.

      

          A Infância de Jesus
          Jesus passou a Sua infância numa pequena aldeia montesina. Sendo o Filho de Deus, podia ter escolhido para Sua habitação o lugar que Lhe aprouvesse no mundo. Não teria deixado de fazer honra até mesmo a um palácio real. Ele, porém, não buscou as habitações dos ricos nem os palácios dos reis. Preferiu morar entre a gente pobre de Nazaré. Jesus deseja que os pobres saibam que Ele conhece as suas provações. Ele sofreu tudo o que eles próprios têm que sofrer. Por isso pode compreendê-los e ajudá-los.
          D'Ele foi dito quando ainda menino: «E o Menino crescia e Se fortalecia em Espírito, cheio de sabedoria; e a graça de Deus estava sobre Ele.» «E crescia Jesus em sabedoria, e em estatura, e em graça para com Deus e os homens.» Seu espírito era lúcido e activo. Tinha facilidade de percepção e revelava uma ponderação e sabedoria precoces. Contudo os Seus modos eram simples e infantis, crescendo em estatura e inteligência como os demais meninos.
          Manifestava a todo o tempo um espírito amável e despretensioso. Estava sempre pronto a servir os outros, e era paciente e verdadeiro. Inabalável como uma rocha no domínio do direito, nunca deixava contudo, de mostrar-Se amável e cortês para com os outros. Na sua casa paterna e onde quer que estivesse, a Sua presença era como a luz do sol. Para com os pobres e pessoas de idade revelava bondade e respeito, estendendo a Sua bondade até aos próprios irracionais. Cuidava com solicitude ainda de um simples passarinho ferido, e tudo respirava felicidade onde Ele Se encontrasse.
          Nos dias de Jesus os judeus atribuíam particular importância è educação dos filhos. Havia escolas anexas às sinagogas ou casas de culto; os mestres denominavam-se rabinos, e eram pessoas que se supunham dotadas de cultura. Jesus não frequentou essas escolas, porquanto ensinavam muitas coisas que não eram verdadeiras. Em vez da palavra de Deus estudavam-se preceitos dos homens, e muitas vezes estes estavam em contradição com o que Deus havia ensinado pelos Seus profetas. O próprio Deus por Seu Espírito instruiu Maria como devia educar seu Filho. Maria instruía a Jesus nas Santas Escrituras, e Ele lia-as por Si mesmo.
          Jesus apreciava também o estudo das maravilhas de Deus no céu e na terra. Nesse livro da natureza admirava as plantas, os animais, o sol e as estrelas. Anjos do Céu estavam presentes, ajudando-O a aprender através desse livro acerca de Deus. Assim pois crescia Ele em estatura e força, e também em conhecimento e sabedoria. Todos os meninos estão em condições de adquirir conhecimentos como Jesus adquiriu. Devíamos gastar o nosso tempo em aprender o que é verdadeiro. Mentiras e fábulas de nada aproveitam. Só a verdade é que tem valor real, e podemos aprendê-la da Palavra de Deus e das Suas obras. Estudando estas coisas, a nossa mente fortalecer-se-á, os nossos corações tornar-se-ão puros e atingiremos mais a semelhança de Cristo.
          Todos os anos José e Maria subiam a Jerusalém para assistir à festa da Páscoa. Quando Jesus tinha a idade de doze anos eles levaram-n'O consigo. Esta era uma jornada agradável. O povo caminhava a pé ou transportado por bois ou jumentos, gastando nessa viagem alguns dias. A distância de Nazaré a Jerusalém é de cerca de cem quilómetros. De todas as partes do país e até mesmo de países estrangeiros afluíam pessoas à festa, tendo por costume associarem-se para essa jornada os que eram da mesma terra.
          A festa era celebrada em fins de Março ou princípios de Abril, o tempo da Primavera na Palestina, quando toda a terra se ornava de flores e os ares ressoavam com o canto dos pássaros. No trajecto, os pais narravam aos filhos as maravilhas que Deus operara a favor de Israel nos tempos passados. E muitas vezes entoavam juntos alguns dos belos salmos de David.
          Nos dias de Jesus o povo perdera o zelo, tendo-se tornado formalista nos seus actos de culto. As pessoas pensavam mais nos próprios prazeres do que na bondade de Deus para com elas. Não se dava entretanto o mesmo com Jesus. Ele tinha prazer em meditar acerca de Deus. Quando chegou ao templo, observou atento o serviço ministrado pelos sacerdotes. Inclinava-Se com os adoradores quando se ajoelhavam para a oração, e unia Sua voz à deles em louvor a Deus. Todas as manhãs e todas as tardes era costume oferecer-se um cordeiro sobre o altar. Isto deveria representar a morte do Salvador. Enquanto os olhos de Jesus pousavam sobre a inocente vítima, o Espírito de Deus dava-Lhe a entender o significado do acto. Sabia que Ele próprio, como o Cordeiro de Deus, devia ser morto do mesmo modo pelos pecados do homem.
          Com o espírito cheio de tais reflexões Jesus sentia a necessidade de recolhimento. Por isso não Se demorou com Seus pais no templo; e quando regressaram, já não estava com eles. Numa sala anexa ao templo havia uma escola dirigida pelos rabinos; a essa sala Se dirigiu Jesus. Tomando assento entre os Seus companheiros de infância, pôs-Se a escutar a palavra dos grandes mestres.
          Os judeus alimentavam muito ideias erróneas acerca do Messias. Jesus sabia-o, mas não contradizia os homens doutos. Como alguém que desejava instruir-se, propôs-lhes perguntas acerca dos escritos dos profetas. O capítulo 53 de Isaías trata da morte do Salvador, e Jesus, lendo esse capítulo, pediu aos rabinos que explicassem o seu sentido. Os rabinos não puderam responder. Começaram por isso a interrogar Jesus, e ficaram assombrados com o conhecimento que Ele possuía das Escrituras. Perceberam que as conhecia muito melhor do que eles. Era evidente que os seus próprios ensinos estavam errados, mas não estavam dispostos a crer em coisa diferente.
          Tal era entretanto a modéstia e a delicadeza com que Se portava Jesus, que Ele não lhes desagradou. Desejavam mesmo tê-lo por discípulo, para O ensinarem a interpretar as Escrituras à sua maneira.
          Quando José e Maria partiram de Jerusalém para voltarem à sua terra, não notaram que Jesus não ia com eles. Supunham que estivesse em companhia de alguns dos seus conhecidos e amigos. Ao estabelecer-se à noite o acampamento deram, porém, pela Sua ausência. Fizeram indagações entre todos os conhecidos, mas sem resultado. José e Maria começaram pois a perturbar-se muito. Lembraram-Se de que Herodes havia tentado matá-l'O quando ainda pequeno, e recearam que Lhe houvesse sucedido algum mal. Com os corações aflitos voltaram depressa a Jerusalém, onde só vieram a encontrá-l'O ao terceiro dia.
          Foi grande o seu regozijo quando O acharam; Maria, porém, entendeu que Jesus devia ser repreendido por ter abandonado Seus pais. Disse-Lhe: «Filho, porque fizeste assim para connosco? Eis que Teu pai e eu ansiosos Te procurávamos». Jesus lhes respondeu: «Porque é que Me procuráveis? Não sabeis que Me convém tratar dos negócios de Meu Pai?» S. Lucas 2:48-49. Ao dizer estas palavras Jesus apontou para o Céu. No Seu rosto reflectia-se uma luz que os deixou admirados. Jesus sabia que era o Filho de Deus, e que estava fazendo a obra para a qual tinha sido enviado ao mundo da parte de Seu Pai. Maria jamais se esqueceu destas palavras. Nos anos que se seguiram compreendeu cada vez melhor o seu sentido profundo.
          José e Maria amavam a Jesus, mas tinham revelado certa negligência ao perdê-l'O. Tinham-se esquecido da obra que Deus os incumbira de fazer. Um dia de negligência foi bastante para perderem a Jesus! É assim que muitos hoje se privam da companhia de Jesus. Quando não apreciamos falar a respeito d'Ele ou orar-Lhe, ou quando nos ocupamos em conversas frívolas ou más, separamo-nos de Jesus; e separados d'Ele, ficamos ao abandono e na tristeza. Se, porém, desejamos realmente a Sua companhia, Ele estará a todo o tempo connosco. Com aqueles que amam a Sua presença, Jesus gosta de deter-Se. A Sua presença trará felicidade ao mais humilde casebre e encherá de regozijo o mais triste coração.
          Embora soubesse que era o Filho de Deus, Jesus voltou com José e Maria para Nazaré, e até à idade de trinta anos foi-lhes inteiramente sujeito. Aquele que era o Chefe das milícias celestes tornou-Se na terra um obediente Filho. As grandes coisas sugeridas à Sua mente pelo serviço do templo estavam guardadas em Seu coração. Em Nazaré esperou até ao tempo determinado por Deus para começar a obra que Lhe fora designada.
          Jesus viveu em casa de um pobre camponês. Com fidelidade e satisfação cumpria a Sua parte para ajudar a manter a família. Logo que atingiu idade suficiente, aprendeu o ofício de carpinteiro, em que trabalhou, ajudando a Seu pai adoptivo. Exercendo a Sua actividade por meio do trabalho manual, exercia todas as Suas faculdades de modo a conservá-las sãs e fortes, para poder fazer o melhor trabalho possível. Tudo o que fazia era bem feito. Desejava ser perfeito, até mesmo no manejo da ferramenta. Por Seu exemplo ensinou-nos a ser industriosos, a fazer o nosso serviço com cuidado e considerar o trabalho uma coisa honrosa. Todos deviam procurar ocupar-se em algo que os possa tornar úteis a si mesmos e também aos outros.
          Deus deu-nos o trabalho para nos ser uma bênção, e Ele agrada-Se das crianças que, contentes, executam a sua parte nos afazeres domésticos, partilhando os encargos do pai e da mãe. Tais filhos, ao deixar os seus lares, constituirão uma bênção para o mundo. A mocidade que procura agradar a Deus em tudo quanto faz, e que pratica o bem pelo amor do bem, será útil na sociedade. Ao ser fiel em posições humildes, habilitar-se-á para posições mais elevadas.
      

          Dias de Luta
          Os mestres judaicos tinham estabelecido para o povo muitas leis e exigiam deles muitas coisas que Deus não ordenara. Até os meninos tinham de sujeitar-se às suas exigências. Jesus, porém, não procurava aprender o que esses rabinos ensinavam. Embora tivesse cuidado em não falar desrespeitosamente desses doutores, só examinava as Escrituras e obedecia às leis de Deus. Muitas vezes era repreendido por não proceder como os demais meninos. Então costumava mostrar pela Bíblia o que Deus exige de nós.
          Jesus procurava sempre levar a felicidade a todos. Por Sua bondade e delicado trato os rabinos alimentavam, porém debalde, a esperança de conseguir que Ele Se sujeitasse aos seus ensinos. Quando insistiam para obedecer aos seus preceitos, perguntava-lhes o que dizia a Bíblia. Não recusaria fazer o que esta dissesse. Tal atitude irritava os rabinos. Sabiam que os seus preceitos não eram apoiados pela Bíblia; mas não levavam a bem que Jesus Se recusasse a obedecer-lhes. Queixavam-se pois d'Ele a Seus pais.
          José e Maria tinham os rabinos na conta de bons homens, e por isso Jesus sofreu censuras bastante difíceis de suportar. Os irmãos de Jesus tomavam o partido dos rabinos. As palavras desses doutores, diziam eles, deviam ser acatadas como as palavras de Deus, e censuravam a Jesus por Sua atitude de superioridade em relação aos guias do povo.
          Os próprios rabinos consideravam-se melhores do que os outros homens, e desdenhavam relacionar-se com o vulgo. Os pobres e ignorantes eram desprezados por eles. Até os doentes e sofredores eram por eles deixados ao abandono e sem esperança e conforto. Jesus revelava um tocante interesse por todos os homens. Procurava ajudar toda a pessoa sofredora com que Se deparasse. Não dispunha de recursos pecuniários, mas muitas vezes renunciava ao próprio pão a fim de mitigar a fome de alguém.
          Quando os Seus irmãos falavam asperamente aos miseráveis e desgraçados, Ele ia ter com essas pessoas e dirigia-lhes palavras de bondade e de ânimo. Tudo isto desagradava a Seus irmãos, que O ameaçavam, procurando atemorizá-l'O; Jesus, porém, mantinha sempre a mesma linha de conduta, não fazendo senão o que parecia bem a Deus.
          Muitas foram as tentações e provas que Jesus teve de enfrentar. Satanás procurava continuamente ocasiões para vencê-l'O. Se Jesus pudesse ter sido levado a proferir uma única palavra de impaciência ou a praticar um erro que fosse, não Se poderia ter tornado o nosso Salvador. Satanás sabia-o, sendo essa a razão por que tão persistentemente se empenhava em induzir o Salvador a pecar. Apesar de Jesus ser continuamente protegido por anjos celestes, a Sua vida foi uma longa luta contra as potestades das trevas. Nenhum de nós terá jamais de arcar com tentações tão terríveis como as que Ele sofreu. Para cada tentação, porém, só tinha uma resposta: «ESTÁ ESCRITO».
          Nazaré era uma aldeia ímpia, e os jovens muitas vezes tentavam Jesus a acompanhá-los nos seus maus caminhos. Como era um rapaz vivo e alegre, não desdenhavam a Sua companhia. Entretanto os Seus princípios de piedade não lhes agradavam. Muitas vezes, por recusar associar-se a eles nalguma prática desonesta, chamavam-n'O de cobarde. Não raro escarneciam d'Ele por Se mostrar muito escrupuloso em coisas insignificantes. A tudo isto só tinha por resposta: «O temor do Senhor é a sabedoria, e apartar-se do mal a inteligência». Job 28:28. O amor do mal é o amor da morte, porque «o salário do pecado é a morte».
          Jesus não reivindicava os Seus direitos. Quando maltratado, sofria com paciência. Por ser assim condescendente e resignado, muitas vezes tornavam o seu trabalho desnecessariamente penoso. Contudo não desanimava, porque sabia que Deus O contemplava com favor.
          As Suas horas mais felizes eram aquelas em que podia estar a sós com a natureza. Terminado o Seu trabalho, dirigia-Se aos campos, a fim de entregar-Se à meditação na sombra de verdejantes vales ou à oração nas encostas das montanhas ou nas florestas. Escutava os pássaros oferecendo notas de louvor ao Criador e associava-Se a eles com alegres hinos de adoração e reconhecimento. Com cântico e adoração saudava o despontar do dia, que muitas vezes vinha encontrá-l'O nalgum lugar solitário meditando em Deus, estudando a Bíblia ou concentrado em oração.
          Desses momentos de pacífico repouso em Deus, Ele tornava, então, ao seio da família para reassumir os Seus deveres quotidianos e dar um exemplo de paciente trabalho. Onde quer que estivesse, a Sua presença parecia fazer aproximarem-se os anjos da terra. A influência da Sua vida pura e santa era sentida em todas as classes do povo. Inocente e puro, movia-Se no meio dos negligentes, dos rudes e intratáveis, encontrando-Se com o injusto publicano, o perdulário insensato, o insensível soldado ou o rude camponês.
          Jesus tinha sempre palavras de simpatia para os que suspiravam sob o duro fardo da vida. Partilhando os seus pesares, repetia-lhes as lições aprendidas da natureza acerca do amor, da bondade e da misericórdia de Deus. Ensinava-lhes a considerarem-se como entes dotados de preciosos talentos que, legitimamente usados, lhes dariam venturas eternas. Pelo Seu próprio exemplo inculcava a preciosidade dos momentos fugitivos da existência, que cumpre empregar sempre nalguma coisa útil.
          Não Lhe consentia o ânimo passar por alto a quem quer que fosse como indigno da Sua consideração, mas procurava esforçar e animar ainda os mais rudes e pouco prometedores. Dizia-lhes que Deus os amava como a Seus filhos, e que havia possibilidade para eles de atingirem a semelhança do Seu carácter.
          Deste modo Jesus obrava silenciosamente em favor de outros desde a Sua mais tenra infância, e a essa obra ninguém nem os sábios doutores nem ainda os próprios irmãos, podia induzi-l'O a renunciar. Com um firme propósito realizou o desígnio de Sua vida, que era ser a luz do mundo.

          O Baptismo
          Ao chegar o tempo de Jesus iniciar o ministério público, o Seu primeiro acto foi dirigir-Se ao rio Jordão e fazer-Se baptizar por João Baptista. João tinha sido enviado a preparar o caminho para o Senhor. Pregando no deserto, a sua mensagem resumia-se nisto: «O tempo está cumprido, e o reino de Deus está próximo. Arrependei-vos e crede no Evangelho». S. Marcos 1:15. Multidões acorriam para ouvi-l'O. Muitos eram convencidos dos seus pecados e baptizados por ele no Jordão.
          Deus advertira a João que um dia viria a ele o Messias para lhe pedir que O baptizasse. Deu-lhe também um sinal pelo qual O poderia reconhecer. Quando Jesus Se apresentou a João, este notou nos Seus traços fisionómicos reflexos de uma vida tão eminentemente pura que se recusou a baptizá-l'O, dizendo: «Eu careço de ser baptizado por Ti, e Tu vens a mim?» Jesus, porém, respondendo, disse-lhe: «Deixa por agora, porque assim nos convém cumprir toda a justiça». S. Mateus 3:14-15.
Quando Jesus proferiu estas palavras, uma luz celestial iluminou-Lhe o rosto, tal como a que fora notada por Simeão quando Ele foi apresentado no templo. Então João conduziu a Jesus para as águas e ali O baptizou à vista de todo o povo.
          Jesus não recebeu o baptismo para manifestar o arrependimento dos Seus pecados, porque n'Ele não houve pecado algum. Fez-Se, porém, baptizar para constituir-Se também nisso um exemplo para nós.
          Quando Jesus saiu da água, ajoelhou-Se à margem e dirigiu uma prece ao Pai. Abriu-se então o Céu «e viu o Espírito de Deus descendo como pomba e vindo sobre Ele.» Todo o Seu ser ficou envolto numa auréola de luz provinda do trono de Deus, e do céu aberto uma voz Lhe falou nestes termos: «Este é o Meu Filho amado, em Quem Me comprazo». S. Mateus 3:16,17.
          A glória que nessa ocasião repousou sobre Jesus é o penhor do amor de Deus aos homens. Jesus veio fazer-Se nosso exemplo, e tão certo como Deus ter deferido a Sua petição, é certo que Ele ouvirá as nossas orações. Os mais necessitados, os maiores pecadores, os mais desprezados podem ter acesso ao Pai. Quando nos dirigimos a Deus em nome de Jesus, a mesma voz que falou a Ele também nos falará a nós, dizendo: «Este é o Meu Filho amado, em Quem Me comprazo».

HINE  MA  TOV


Texto extraído do livro Vida de Jesus de Ellen White. Convido o estimado leitor a comprar este pequeno mas excelente livro na Publicadora SerVir, para continuar a desfrutar da leitura da Vida de Jesus neste mundo.

BOAS FESTAS / BUONE FESTE / MEILLEURS VOEUX / SEASON'S GREETINGS / FROHE FESTTAGE

(Pode ouvir músicas de Natal no último grupo dos links de Leituras para a Vida
e de O Caminho para a Esperança)

terça-feira, 31 de outubro de 2017


31 de OUTUBRO de 2017

CELEBRAÇÃO DOS 500 ANOS DA REFORMA PROTESTANTE



LUTERO PERANTE A DIETA


       Um novo imperador, Carlos V, tinha subido ao trono da Alemanha, e os emissários de Roma apressaram-se a apresentar as suas felicitações e a levar o monarca a usar o seu poder contra a Reforma. Por outro lado, o príncipe eleitor da Saxónia, a quem Carlos devia, em grande parte, a coroa, pedia-lhe para não dar nenhum passo contra Lutero antes de lhe ser dada oportunidade de ser ouvido. O imperador ficou assim colocado numa posição de grande indecisão e embaraço. Os adeptos do papa só ficariam satisfeitos com um édito imperial que ordenasse a morte de Lutero. O príncipe declarava firmemente que "nem sua majestade imperial, nem qualquer outra pessoa tinha demonstrado terem sido refutados os escritos de Lutero"; portanto, pedia "que o Dr. Lutero fosse provido de salvo-conduto, de maneira a poder comparecer perante um tribunal de juízes sábios, piedosos e imparciais." — D’Aubigné.
       A atenção de todos os partidos dirigia-se agora para a assembleia dos Estados alemães, que se reuniu em Worms logo após a ascensão de Carlos ao poder imperial. Havia questões importantes e interesses políticos a serem analisados por esse concílio nacional. Pela primeira vez, os príncipes da Alemanha deveriam encontrar-se com o seu jovem monarca numa assembleia deliberativa. De todas as partes do país tinham chegado os representantes da Igreja e do Estado. Fidalgos, de alta linhagem, poderosos e ciosos dos seus direitos hereditários, nobres eclesiásticos, envaidecidos com a consciência da sua superioridade social e do seu poder; membros da corte com os seus partidários armados e embaixadores de países estrangeiros e distantes, todos estavam reunidos em Worms. Contudo, naquela vasta assembleia, o assunto que despertava o mais profundo interesse era a causa do reformador saxónio.
       Carlos tinha previamente encarregado o príncipe eleitor de levar Lutero consigo à Dieta, assegurando-lhe protecção e prometendo uma livre discussão das questões em debate, com pessoas competentes. Lutero estava ansioso por comparecer perante o imperador. A sua saúde, naquela ocasião estava muito debilitada, mas apesar disso, escreveu ao eleitor: "Se eu não puder ir a Worms com boa saúde, serei levado para lá, doente como estou. Pois se o imperador me chama, não posso duvidar de que é o chamado do próprio Deus. Se desejarem usar de violência para comigo (o que é muito provável, pois não é para se instruírem que me ordenam que compareça), ponho o caso nas mãos do Senhor. Ainda vive e reina Aquele que preservou os três jovens na fornalha ardente. Se Ele não me salvar, a minha vida é de pouca importância. Vamos apenas evitar que o evangelho seja exposto ao escárnio dos ímpios, e, por ele, vamos derramar o nosso sangue, de preferência a deixar que eles triunfem. Não me compete decidir se a minha vida ou a minha morte contribuirá mais para a salvação de todos. ... Podem esperar tudo de mim ... excepto fuga e renúncia. Fugir, não posso, e menos ainda retractar-me." — D’Aubigné.
       Quando circularam em Worms as notícias de que Lutero deveria comparecer perante a Dieta, houve uma excitação geral. Aleandro, o delegado papal a quem o caso tinha sido especialmente confiado, estava alarmado e enraivecido. Via que o resultado seria desastroso para a causa papal. Instituir um inquérito sobre um caso em que o papa já tinha pronunciado a sentença de morte seria lançar o desdém sobre a autoridade do sumo pontífice. Além disso, estava apreensivo com o facto de que os eloquentes e poderosos argumentos daquele homem pudessem desviar muitos dos príncipes da causa do papa.
       Por isso, insistentemente, protestou junto Carlos contra o aparecimento de Lutero em Worms. Por esta altura foi publicada a bula que declarava a excomunhão de Lutero. Este facto, a acrescentar às reclamações do legado, levou o imperador a ceder. Escreveu ao príncipe eleitor dizendo que, se Lutero não se retractasse, deveria permanecer em Wittenberg.
       Não contente com esta vitória, Aleandro trabalhou com toda a sua força e astúcia para conseguir a condenação de Lutero. Com uma persistência digna da melhor causa, insistiu para que o caso fosse levado ao conhecimento dos príncipes, prelados e outros membros da assembleia, acusando o reformador de "sedição, rebelião e blasfémia." Mas a veemência e paixão manifestadas pelo legado revelaram de uma forma demasiado evidente o espírito que o impulsionava. "Ele é movido pelo ódio e vingança", foi a observação geral, "muito mais do que pelo zelo e piedade." — D’Aubigné. A maior parte dos membros da Dieta estava mais do que nunca inclinada a considerar favoravelmente a causa de Lutero.
       Com redobrado zelo, Aleandro insistia com o imperador sobre o dever de executar os éditos papais. Mas, pelas leis da Alemanha, não se poderia fazer isto sem o apoio dos príncipes. E, vencido, finalmente, pela insistência do legado, Carlos deu-lhe ordem para apresentar o seu caso à Dieta.
       "Foi um dia magnífico para o núncio. A assembleia era grandiosa; a causa ainda maior. Aleandro deveria defender a causa de Roma, ... mãe e senhora de todas as igrejas." Deveria reivindicar a soberania de Pedro perante os principados da cristandade, reunidos em assembleia. "Possuía o dom da eloquência e ergueu-se à altura da ocasião. Determinava a Providência que Roma aparecesse e pleiteasse pelo mais capaz dos seus oradores, na presença do mais augusto tribunal, antes de ser condenada." — Wylie.
       Com alguns receios, os que favoreciam o reformador anteviam o efeito dos discursos de Aleandro. O príncipe eleitor da Saxónia não estava presente, mas por sua ordem alguns dos seus conselheiros estavam presentes para tomar notas do discurso do núncio.
       Com todo o prestígio do saber e da eloquência, Aleandro pôs-se a derrubar a verdade. Lançou acusação sobre acusação contra Lutero, como um inimigo da Igreja e do Estado, dos vivos e dos mortos, do clero e dos leigos, dos concílios e dos cristãos em geral. "Nos erros de Lutero há o suficiente", declarou ele, para assegurar a queima de "cem mil hereges."
       Em conclusão, esforçou-se por lançar o desprezo aos adeptos da fé reformada: "O que são estes luteranos? Um grupo de mestres insolentes, padres corruptos, monges dissolutos, advogados ignorantes e nobres degradados, juntamente com o povo comum a quem desviaram e perverteram. Quão superior lhes é o grupo católico em número, competência e poder! Um decreto unânime desta ilustre assembleia esclarecerá os simples, avisará os imprudentes, levará os indecisos à decisão e fortalecerá os fracos." — D’Aubigné.
       Com armas destas, os defensores da verdade têm sido atacados, em todas as épocas. Ainda são apresentados os mesmos argumentos contra todos os que ousam mostrar os simples e directos ensinos da Palavra de Deus, contra erros estabelecidos. "Quem são estes pregadores de novas doutrinas?", exclamam os que desejam uma religião popular. "São incultos, pouco numerosos, e pertencem às classes pobres. Contudo pretendem ter a verdade e ser o povo escolhido de Deus. São ignorantes e estão enganados. Quão superior em número e influência é a nossa igreja! Quantos homens grandes e ilustres existem entre nós! Quanto mais poder há do nosso lado!" São estes os argumentos que têm influência decisiva sobre o mundo. Mas não são mais determinantes hoje do que nos dias do reformador.

       A Reforma não terminou com Lutero, como muitos supõem. Continuará até ao fim da história deste mundo. Lutero teve uma grande obra para fazer, transmitindo a outros a luz que Deus permitira que brilhasse sobre ele. Contudo, não recebeu toda a luz que deveria ser dada ao mundo. Desde aquele tempo até hoje, nova luz tem estado continuamente a resplandecer sobre as Escrituras, e novas verdades têm estado a ser constantemente desvendadas.
       O discurso do legado impressionou profundamente os membros da Dieta. Não estava presente nenhum Lutero, com as claras e convincentes verdades da Palavra de Deus, para derrotar o defensor papal. Não foi feita nenhuma tentativa para defender o reformador. Era manifesta a disposição geral de não só o condenar, bem como às doutrinas que ele ensinava, mas, se possível, arrancar a heresia pela raiz. Roma dispusera da mais favorável oportunidade para defender a sua causa. Tudo que ela poderia ter dito em sua própria defesa, fora dito. Mas a aparente vitória foi o sinal da derrota. Dali em diante, o contraste entre a verdade e o erro seria visto mais claramente, ao entrarem na luta em campo aberto. Nunca mais, desde aquele dia, Roma se haveria de sentir tão segura como tinha estado.
       Embora a maior parte dos membros da Dieta não tivesse hesitado em entregar Lutero à vingança de Roma, muitos viam e deploravam a depravação que existia na igreja, e estavam desejosos de acabar com os abusos, de que o povo alemão era vítima, em consequência da corrupção e da cobiça da hierarquia. O legado tinha apresentado o dogma papal sob a luz mais favorável. O Senhor então influenciou um membro da Dieta a dar uma correcta descrição dos efeitos da tirania papal. Com nobre firmeza, o Duque Jorge da Saxónia levantou-se naquela assembleia de príncipes e enumerou, com extrema precisão, os enganos e as abominações do papado e os seus terríveis resultados. E ao concluir disse:
       "Estes são alguns dos abusos que clamam contra Roma. Toda a vergonha foi posta de parte, e o seu único objetivo é ... dinheiro, dinheiro, dinheiro, ... de maneira que os pregadores que deveriam ensinar a verdade, não dizem senão falsidades, e não só são tolerados mas recompensados, porque quanto maiores forem as suas mentiras, tanto maior será o seu lucro. É dessa fonte impura que saem essas águas contaminadas. A devassidão estende a mão à avareza. ... Ai! É o escândalo causado pelo clero que lança tantas pobres almas na condenação eterna. Deve ser efetuada uma reforma geral." — D’Aubigné.
       Nem o próprio Lutero poderia ter feito uma denúncia mais hábil e convincente contra os abusos papais. E o facto de o orador ser um decidido inimigo do reformador deu ainda maior influência às suas palavras.

       Se os olhos dos que constituíam a assembleia fossem abertos, teriam visto anjos de Deus entre eles, derramando raios de luz através das trevas do erro e abrindo mentes e corações à recepção da verdade. Era o poder do Deus da verdade e da sabedoria que controlava os adversários da Reforma, preparando assim o caminho para a grande obra que estava prestes a realizar-se. Martinho Lutero não estava presente. Mas a voz de Alguém, maior do que Lutero, fora ouvida naquela assembleia.

       De imediato a Dieta designou uma comissão para apresentar um relatório das opressões papais que de uma forma tão esmagadora pesavam sobre o povo alemão. Esta lista, contendo cento e uma discriminações, foi apresentada ao imperador, com o pedido de que ele tomasse medidas imediatas para a correção daqueles abusos. "Que perda de almas cristãs", diziam os suplicantes, "que depredações, que extorsões, por causa dos escândalos de que se acha rodeada a cabeça espiritual da cristandade! É nosso dever evitar a ruína e desonra do nosso povo. Por isso, nós, com muita humildade, mas com muita insistência, vos rogamos que ordene uma reforma geral e empreenda a sua realização." — D’Aubigné.
       O concílio pediu então a comparência do reformador na sua presença. Apesar dos rogos, protestos e ameaças de Aleandro, o imperador finalmente consentiu, e Lutero foi intimado a comparecer perante a Dieta. Com a intimação, foi enviado um salvo-conduto, assegurando o seu regresso a um lugar seguro. Ambos foram levados a Wittenberg por um arauto que estava incumbido de conduzir o reformador a Worms.
       Os amigos de Lutero estavam aterrorizados e angustiados. Sabendo do preconceito e inimizade que havia contra ele, temiam que mesmo o salvo-conduto não fosse respeitado, e pediam-lhe que não pusesse a sua vida em perigo. Ele replicou: "Os sectários do papa não desejam a minha ida a Worms, mas sim a minha condenação e morte. Não importa. Não orem por mim, mas pela Palavra de Deus. ... Cristo dar-me-á o Seu Espírito para vencer esses ministros do erro. Desprezo-os durante a minha vida. Triunfarei sobre eles pela minha morte. Estão atarefados em Worms com o intuito de me obrigarem a renunciar, e esta será a minha retractação: anteriormente eu dizia que o papa era o vigário de Cristo; hoje assevero ser ele o adversário de nosso Senhor e o apóstolo do diabo." — D’Aubigné.

       Lutero não deveria fazer sozinho a sua perigosa viagem. Além do mensageiro imperial, três dos seus amigos mais dedicados decidiram acompanhá-lo. Melancton insistiu em unir-se a eles. O seu coração estava ligado ao de Lutero, e ansiava segui-lo, se necessário, até à prisão ou à morte. Os seus rogos, porém, não foram atendidos. Se Lutero perecesse, as esperanças da Reforma deveriam centralizar-se neste jovem colaborador. Quando se despediu de Melancton, o reformador disse: "Se eu não voltar e os meus inimigos me matarem, continua a ensinar e permanece firme na verdade. Trabalha em meu lugar. ... Se sobreviveres, será pequena a consequência da minha morte." — D’Aubigné. Estudantes e cidadãos que se tinham reunido para assistir à partida de Lutero ficaram profundamente comovidos. Uma multidão, cujo coração havia sido tocado pelo evangelho, despediu-se dele, com lágrimas. Assim, o reformador e os seus companheiros partiram de Wittenberg.
       Durante a viagem, aperceberam-se de que o espírito do povo estava oprimido com tristes pressentimentos. Nalgumas cidades, não lhe eram prestadas nenhumas honras. Quando pararam para o repouso, um padre amigo exprimiu os seus temores, segurando diante de Lutero o retrato de um reformador italiano que tinha sofrido o martírio. No dia seguinte, souberam que os escritos de Lutero haviam sido condenados em Worms. Mensageiros imperiais estavam a proclamar o decreto do imperador, e apelando ao povo para trazerem aos magistrados as obras proscritas. O arauto, temendo pela segurança de Lutero no concílio e julgando que a sua resolução já pudesse estar abalada, perguntou se ele ainda desejava continuar em frente. Respondeu: "Embora interdito em todas as cidades, irei." — D’Aubigné.
       Em Erfurt, Lutero foi recebido com honras. Cercado de multidões que o admiravam, passou pelas ruas que ele já tinha muitas vezes atravessado com saco de pedinte. Visitou a sua capela no convento e pensou nas lutas pelas quais a luz que agora inundava a Alemanha se derramara na sua alma. Insistiram com ele para que pregasse. Ele tinha sido proibido de o fazer, mas o arauto autorizou-o, e o frade, que fora outrora o serviçal do convento, subiu agora ao púlpito.
       Então falou e uma multidão que ali se reunira, usando as palavras de Cristo: "Paz seja convosco!" "Filósofos, doutores e escritores", disse ele, "têm-se esforçado por ensinar aos homens o meio para se obter a vida eterna, e não o têm conseguido. Contar-vos-ei agora: ... Deus ressuscitou dos mortos um Homem, o Senhor Jesus Cristo, para que pudesse destruir a morte, extirpar o pecado e fechar as portas do inferno. Esta é a obra da salvação. ... Cristo venceu! Estas são as alegres novas e somos salvos pela Sua obra, e não pela nossa. ... Disse nosso Senhor Jesus Cristo: 'Paz seja convosco! Olhem para as Minhas mãos'; isto quer dizer: Olha, ó homem, fui Eu, Eu só, que te tirei o teu pecado e te resgatei; e agora tens paz, diz o Senhor."
       Continuou, mostrando que a verdadeira fé se manifestará através de uma vida santa. "Visto que Deus nos salvou, organizemos os nossos trabalhos de tal maneira que possam ser aceitáveis perante Ele. És rico? Que os teus bens ajudem nas necessidades dos pobres. És pobre? Que os teus serviços sejam aceitáveis aos ricos. Se o teu trabalho é útil apenas para ti, o serviço que pretendes prestar a Deus é uma mentira." — D’Aubigné.

       O povo ouvia, como que extasiado. O pão da vida fora partido para aquelas almas famintas. Perante elas, Cristo foi elevado acima de papas, legados, imperadores e reis. Lutero não fez referência alguma à sua posição perigosa. Não procurou fazer-se objeto dos pensamentos e simpatias. Contemplando Cristo, tinha perdido de vista o eu. Escondeu-se por detrás do Homem do Calvário, procurando apenas apresentar Jesus como o Redentor do pecador.
       Prosseguindo viagem, o reformador era olhado por toda a parte com grande interesse. Uma ávida multidão acotovelava-se ao seu redor, e vozes amigas advertiam-no dos propósitos dos romanistas. "Eles vos queimarão", diziam alguns, "e reduzirão vosso corpo a cinzas, como fizeram com João Huss." Lutero respondia: "Ainda que acendessem por todo o caminho de Worms a Wittenberg uma fogueira cujas chamas atingissem o céu, em nome do Senhor eu caminharia pelo meio delas; compareceria perante eles; entraria pelas mandíbulas desse hipopótamo e quebraria os seus dentes, confessando o Senhor Jesus Cristo." — D’Aubigné.
       A notícia de que estava a chegar a Worms criou uma grande comoção. Os seus amigos temiam pela sua segurança; os seus inimigos temiam pelo êxito da sua causa. Fizeram-se insistentes esforços para o dissuadir de entrar na cidade. Por instigação dos adeptos do papa, insistiu-se com ele para que se retirasse para o castelo de um amigo, onde, dizia-se, todas as dificuldades poderiam ser amigavelmente resolvidas. Os amigos esforçavam-se por despertar nele o medo, descrevendo os perigos que o ameaçavam. Todos os seus esforços falharam. Lutero, ainda inabalável, declarou: "Mesmo que houvesse tantos demónios em Worms como telhas nos telhados, eu entraria na cidade." — D’Aubigné.
       À sua chegada a Worms, junto às portas, reuniu-se uma vasta multidão para lhe dar as boas-vindas. A multidão que se tinha juntado para saudar o próprio imperador não tinha sido tão grande. A excitação foi intensa, e do meio da multidão, uma voz penetrante e lamentosa entoava um canto fúnebre como aviso a Lutero quanto à sorte que o esperava. "Deus será a minha defesa", disse ele, ao descer da carruagem.
       Os chefes papais não tinham acreditado que Lutero realmente se aventurasse a aparecer em Worms, e a sua chegada encheu-os de consternação. O imperador convocou imediatamente os seus conselheiros para considerarem o modo como deveriam agir. Um dos bispos, católico severo, declarou: "Temo-nos consultado durante muito tempo acerca deste assunto. Livre-se vossa majestade imperial, de uma vez, deste homem. Não fez Segismundo com que João Huss fosse queimado? Não somos obrigados a dar nem a observar o salvo-conduto de um herege." "Não!", disse o imperador; "devemos cumprir a nossa promessa." — D’Aubigné. Ficou, portanto, decidido que o reformador seria ouvido.
       Toda a cidade estava ansiosa por ver este homem notável, e rapidamente as estalagens se encheram de uma multidão de visitantes. Lutero acabava de se restabelecer de uma doença recente; estava cansado da viagem que levara duas semanas, tinha de se preparar para enfrentar os graves acontecimentos do dia seguinte e necessitava de sossego e repouso. Tão grande, porém, era o desejo de o verem, que ele apenas tinha descansado algumas horas quando, à sua volta, se reuniram avidamente nobres, intelectuais, sacerdotes e cidadãos. Entre estes estavam muitos dos nobres que tão ousadamente tinham pedido ao imperador uma reforma contra os abusos eclesiásticos e que, diz Lutero, "se tinham todos libertado pelo meu evangelho." — Vida e Tempos de Lutero, de Martyn.
       Inimigos, bem como amigos, foram ver o intrépido monge. Ele, porém, recebeu-os com uma calma inabalável, respondendo a todos com dignidade e sabedoria. O seu porte era firme e corajoso. O rosto, pálido e magro, marcado com os traços de trabalhos e doença, apresentava uma expressão amável e até mesmo alegre. A solenidade e profundo ardor das suas palavras conferiam-lhe um poder a que, até mesmo os seus inimigos, não podiam resistir totalmente. Tanto amigos como adversários sentiam grande admiração. Alguns estavam convictos de que ele era acompanhado por uma influência divina; outros declaravam, como fizeram os fariseus em relação a Cristo: "Ele tem demónio."
       No dia seguinte, Lutero foi chamado para se apresentar perante a Dieta. Designou-se um oficial imperial para o conduzir até ao salão de audiência. Contudo, foi com dificuldade que ele atingiu o local. Todas as ruas estavam cheias de espectadores, ansiosos por ver o monge que tinha tido a ousadia de resistir à autoridade do papa.
       Quando estava para entrar na presença dos seus juízes, um velho general, herói de muitas batalhas, disse-lhe amavelmente: "Pobre monge, pobre monge, vais agora assumir posição mais nobre do que eu ou quaisquer outros capitães já assumimos nas mais sangrentas das nossas batalhas! Mas, se a tua causa é justa, e estás certo disto, vai em frente, em nome de Deus, e não temas nada. Deus não te abandonará." — D’Aubigné.

       Finalmente, Lutero encontra-se perante o concílio. O imperador ocupava o trono. Estava rodeado das mais ilustres personagens do império. Nunca ninguém tinha comparecido perante uma assembleia mais importante do que aquela diante da qual Martinho Lutero deveria responder pela sua fé. "Aquela cena era, em si mesma, uma assinalada vitória sobre o papado. O papa tinha condenado o homem, e, agora, ali estava ele em pé, diante de um tribunal que, por esse mesmo ato, se colocava acima do papa. Este tinha-o posto sob interdição, separando-o de toda a sociedade humana e, no entanto, era chamado de uma forma respeitosa, e recebido perante a mais augusta assembleia do mundo. O papa tinha-o condenado ao silêncio perpétuo, e, agora, estava ali prestes a falar perante milhares de ouvintes atentos, vindos das mais distantes partes da cristandade. Desta forma uma imensa revolução tinha sido efectuada por intermédio de Lutero. Roma descia já do trono, e era a voz de um monge que determinava esta humilhação." — D’Aubigné.
       Na presença daquela poderosa assembleia de titulares, o reformador de origem humilde parecia intimidado e embaraçado. Vários dos príncipes, observando a sua emoção, aproximaram-se dele, e um segredou-lhe: "Não temais os que matam o corpo, mas não podem matar a alma." Outro disse: "Quando forem levados perante os governadores e reis por Minha causa, ser-vos-á ministrado, pelo Espírito do vosso Pai, o que deverão dizer." Assim, as palavras de Cristo foram usadas pelos grandes homens do mundo para fortalecerem o Seu servo na hora de prova.

       Lutero foi conduzido a um lugar bem em frente do trono do imperador. Sobre a assembleia ali congregada fez-se um profundo silêncio. Então, um oficial imperial se levantou-se e, apontando para uma colecção dos escritos de Lutero, pediu que o reformador respondesse a duas perguntas: Se ele os reconhecia como seus, e se estava disposto a retractar-se das opiniões que neles emitira. Lidos os títulos dos livros, Lutero respondeu, relativamente à primeira pergunta, que reconhecia que os livros eram seus. "Quanto à segunda", disse ele, "visto ser uma questão que respeita à fé e à salvação das almas, e que interessa à Palavra de Deus, o maior e mais precioso tesouro quer no Céu quer na Terra, eu agiria imprudentemente se respondesse sem reflexão. Poderia afirmar menos do que as circunstâncias exigem, ou mais do que a verdade requer, e, desta maneira, pecar contra estas palavras de Cristo: 'Qualquer que Me negar diante dos homens, Eu o negarei também diante de Meu Pai, que está nos Céus' (Mateus 10:33). Por isso, com toda a humildade, rogo a vossa majestade imperial que me conceda tempo para eu poder responder sem ofensa à Palavra de Deus." — D’Aubigné.
       Ao fazer este pedido, Lutero agiu prudentemente. A sua conduta convenceu a assembleia de que não estava a agir por paixão ou impulso. Semelhante calma e domínio próprio, inesperados em quem se mostrara audaz e inflexível, aumentaram o seu poder, habilitando-o mais tarde a responder com uma prudência, decisão, sabedoria e dignidade que surpreendiam e decepcionavam os seus adversários, e repreendeu a sua insolência e o seu orgulho.
       Deveria comparecer, no dia seguinte, para dar a resposta final. Durante algum tempo o seu coração cedeu, ao ver as forças que estavam unidas contra a verdade. A sua fé vacilou, sentiu receio e agitação, e foi dominado pelo pavor. Multiplicavam-se diante dele os perigos. Os seus inimigos pareciam estar a triunfar, e os poderes das trevas a prevalecer. Parecia que sobre ele baixavam nuvens que o separavam de Deus. Ansiava pela certeza de que o Senhor dos exércitos estaria com ele. Com uma profunda angústia de espírito, ajoelhou-se com o rosto no chão, derramando estes clamores entrecortantes, lancinantes, que ninguém, senão Deus, pode compreender perfeitamente:
       "Ó Deus, todo-poderoso e eterno", implorava ele, "quão terrível é este mundo! Eis que ele abre a boca para me engolir, e tenho tão pouca confiança em Ti. ... Se é unicamente na força deste mundo que eu devo pôr a minha confiança, tudo está acabado. ... Chegou a minha última hora, a minha condenação foi pronunciada. ... Ó Deus, ajuda-me contra toda a sabedoria do mundo. Faz isto, ... Tu somente; ... pois esta não é obra minha, mas Tua. Nada tenho a fazer por mim mesmo, e devo tratar com estes grandes do mundo. ... Mas a causa é Tua, ... e é uma causa justa e eterna. Ó Senhor, auxilia-me! Deus fiel e imutável, em homem algum ponho a minha confiança. ... Tudo o que é do homem é incerto, tudo o que vem do homem, falha. ... Escolheste-me para esta obra. ... Fica ao meu lado por amor do Teu bem amado Jesus Cristo, que é a minha defesa, o meu escudo e a minha torre forte." — D’Aubigné.

       Uma Providência omnisciente havia permitido a Lutero compreender o perigo, para que não confiasse na sua própria força, lançando-se presunçosamente ao encontro do perigo. Não era, contudo, o temor do sofrimento pessoal, o terror da tortura ou da morte, que parecia iminente, o que o oprimia com os seus horrores. Ele tinha chegado à crise, e sentia a sua insuficiência para a enfrentar. Pela sua fraqueza, a causa da verdade poderia ser prejudicada. Não era pela sua própria segurança, mas pela vitória do evangelho que ele lutava com Deus. A angústia e o conflito da sua alma foram como a de Israel, naquela luta nocturna, ao lado do solitário riacho. Como Israel, prevaleceu com Deus. No seu completo desamparo, a sua fé firmou-se em Cristo, o poderoso Libertador. Fortaleceu-se com a certeza de que não iria compareceria sozinho perante o concílio. A paz voltou à sua alma, e alegrou-se por lhe ser permitido exaltar a Palavra de Deus perante os governadores da nação.
       Com a sua mente repousada em Deus, Lutero preparou-se para a luta que estava diante dele. Meditou sobre o plano da sua resposta, examinou passagens dos seus próprios escritos e tirou das Sagradas Escrituras provas convenientes para sustentar a sua atitude. Então, pondo a mão esquerda sobre o volume Sagrado, que estava aberto diante dele, levantou a sua mão direita para o céu, e fez um voto de "permanecer fiel ao evangelho e confessar francamente a sua fé, mesmo que tivesse de selar com sangue o seu testemunho." — D’Aubigné.




Não perca o cântico final!!! - É Lindo... Lindo... Lindo... É mesmo o sentir do meu/creio que do nosso coração...
Apetece ouvir vezes sem fim... Parabéns ao seu autor! EE

       Ao ser de novo levado perante a Dieta, o seu rosto não apresentava sinais de receio ou embaraço. Calmo e cheio de paz, ainda que extraordinariamente forte e nobre, manteve-se como testemunha de Deus entre os grandes da Terra. O oficial imperial pediu então a sua decisão sobre se desejava retractar-se das suas doutrinas. Lutero respondeu num tom submisso e humilde, sem violência nem paixão. As suas maneiras eram tímidas e respeitosas; manifestou, contudo, confiança e uma alegria que surpreenderam a assembleia.
       "Sereníssimo imperador, ilustres príncipes, amáveis fidalgos", disse Lutero; "compareço neste dia perante vós, em conformidade com a ordem que me foi dada ontem, e pela graça de Deus conjuro vossa majestade e vossa augusta alteza a escutar, atenciosamente, a defesa de uma causa que, estou certo, é justa e verdadeira. Se, por ignorância, eu transgredir os hábitos e etiquetas das cortes, rogo-vos que me perdoem, pois não fui criado em palácios de reis, mas na reclusão de um convento." — D’Aubigné.
       Então, referindo-se à pergunta, declarou que as suas obras publicadas não eram todas do mesmo caráter. Em algumas havia tratado da fé e das boas obras, e mesmo os seus inimigos as declaravam não somente inofensivas, mas proveitosas. Abjurá-las, seria condenar verdades que todas as partes professavam. O segundo tipo consistia em escritos que expunham as corrupções e os abusos do papado. Revogar estas obras, fortaleceria a tirania de Roma, abrindo uma porta mais larga a muitas e grandes impiedades. No terceiro tipo dos seus livros atacara indivíduos que tinham defendido erros existentes. Em relação a eles, confessou, francamente, que tinha sido mais violento do que convinha. Não pretendia estar isento de falta, mas mesmo esses livros não poderia revogar, pois que tal procedimento tornaria audaciosos os inimigos da verdade, e então aproveitariam a ocasião para esmagar o povo de Deus com crueldade ainda maior.
       "Não sou, todavia, senão um mero homem, e não Deus", continuou ele; "portanto, defender-me-ei como fez Cristo: 'Se falei mal, dá testemunho do mal.' ... Pela misericórdia de Deus, conjuro-vos, sereníssimo imperador, e a vós, ilustríssimos príncipes, e a todos os homens de toda a categoria, a provar pelos escritos dos profetas e apóstolos, que errei. Logo que estiver convicto disso, retractarei todo o erro e serei o primeiro a pegar nos meus livros e a atirá-los ao fogo."
       "O que acabo de dizer mostra, claramente, espero eu, que pesei e considerei cuidadosamente os perigos a que me exponho. Mas, longe de me desanimar, regozijo-me por ver que o evangelho é hoje, como nos tempos antigos, causa de perturbação e dissensão. Este é o caráter, este é o destino da Palavra de Deus. 'Não vim trazer paz à Terra, mas espada', disse Jesus Cristo. Deus é maravilhoso e terrível nos Seus conselhos; tenham cuidado para que não aconteça que, supondo apagar dissensões, estejam a perseguir a santa Palavra de Deus e a atrair sobre vós mesmos um terrível dilúvio de perigos insuperáveis, de desastres presentes e desolação eterna. ... Poderia citar muitos exemplos dos oráculos de Deus. Poderia falar dos Faraós, dos reis da Babilónia e dos de Israel, cujos trabalhos nunca contribuíram mais eficazmente para a sua própria destruição do que quando procuravam, mediante conselhos, muito prudentes na aparência, fortalecer o seu domínio. Deus 'é O que transporta montanhas, sem que o sintam.'" — D’Aubigné.

       Lutero tinha falado em alemão. Foi-lhe pedido então para repetir as mesmas palavras em latim. Embora exausto pelo esforço anterior, aceitou e fez novamente o seu discurso, com a mesma clareza e energia que a princípio. A providência de Deus agiu neste caso. O espírito de muitos dos príncipes estava tão obstruído pelo erro e superstição que, à primeira vez não viram a força do raciocínio de Lutero. Mas a repetição deu-lhes a possibilidade de perceber claramente os pontos apresentados.
       Os que obstinadamente fechavam os olhos à luz e decidiram não se convencer da verdade, ficaram enraivecidos com o poder das palavras de Lutero. Quando acabou de falar, o porta-voz da Dieta, cheio de ira disse: "Não respondeste à pergunta feita. ... Exige-se que dês resposta clara e precisa. ... Retractar-te-ás ou não?"
       O reformador respondeu: "Visto que vossa sereníssima majestade e vossas nobres altezas exigem de mim resposta clara, simples e precisa, dar-vo-la-ei, e é esta: Não posso submeter a minha fé quer ao papa quer aos concílios, porque é claro como o dia, que eles têm frequentemente errado e entrado em contradição. Portanto, a menos que eu seja convencido pelo testemunho das Escrituras ou pelo mais claro raciocínio, a menos que eu seja persuadido por meio das passagens que citei, e a menos que assim submetam a minha consciência pela Palavra de Deus, não posso retractar-me e não me retractarei, pois é perigoso a um cristão falar contra a sua consciência. Aqui permaneço, não posso fazer outra coisa; Deus queira ajudar-me. Amém." — D’Aubigné.

       Assim se manteve este homem justo sobre o firme fundamento da Palavra de Deus. A luz do Céu iluminava-lhe o seu rosto. A sua grandeza e pureza de caráter, a paz e a alegria do seu coração, eram evidentes a todos quando testemunhava contra o poder do erro e dava provas da superioridade da fé que vence o mundo.
       Toda a assembleia ficou, durante algum tempo, muda de espanto. Na sua primeira resposta Lutero tinha falado em tom baixo, numa atitude respeitosa, quase submissa. Os romanistas tinham interpretado isto como um sinal de que começava a faltar-lhe o ânimo. Consideraram o pedido de espera como um simples prelúdio da sua retractação. O próprio Carlos, notando, meio desdenhoso, a constituição abatida do monge, o seu traje simples e a simplicidade das suas maneiras, declarara: "Este monge nunca fará de mim um herege." Mas a coragem e firmeza que ele agora demonstrara, bem como a força e a clareza do seu raciocínio, encheram de surpresa todas as partes. O imperador, cheio de admiração, exclamou: "Este monge fala com coração intrépido e coragem inabalável." Muitos dos príncipes alemães olhavam com orgulho e alegria para este representante da sua nação.
       Os partidários de Roma tinham sido vencidos. A sua causa parecia sob a luz mais desfavorável. Procuraram manter o seu poder, não apelando para as Escrituras, mas com recurso às ameaças — incontestável argumento de Roma. Disse o porta-voz da Dieta: "Se não se retractar, o imperador e os governos do império consultar-se-ão quanto à conduta a adotar contra o herege incorrigível."
       Os amigos de Lutero, que com grande alegria ouviram a sua nobre defesa, tremeram perante aquelas palavras; mas o próprio doutor disse calmamente: "Queira Deus ser o meu auxiliador, pois não posso retractar-me de coisa alguma." — D’Aubigné.

       Deram-lhe ordem para se retirar da Dieta, enquanto os príncipes se consultavam entre si. Pressentia-se que tinha chegado uma grande crise. A persistente recusa de Lutero em se submeter poderia afectar a história da Igreja durante séculos. Foi decidido dar-lhe mais uma oportunidade para poder renunciar. Pela última vez, foi levado à assembleia. Novamente lhe perguntaram se ele renunciaria às suas doutrinas. "Não tenho outra resposta a dar", disse ele, "a não ser a que já dei." Era evidente que ele não poderia ser induzido a render-se ao governo de Roma, quer por promessas quer por ameaças.
       Os chefes papais aborreceram-se pelo facto do seu poder, que tinha feito com que reis e nobres tremessem, fosse desprezado, dessa maneira, por um humilde monge. Ansiavam fazê-lo sentir a sua ira, destruindo a sua vida pela tortura. Lutero, porém, compreendendo o perigo, tinha falado a todos com uma dignidade e uma calma cristãs. As suas palavras tinham sido isentas de orgulho, paixão e falsidade. Tinha deixado de olhar para si próprio e para os grandes homens que o cercavam, e apenas sentia que estava na presença de Alguém infinitamente superior a papas, prelados, reis e imperadores. Cristo tinha falado através do testemunho de Lutero, com poder e grandeza tais que na ocasião causou espanto e admiração tanto a amigos como a adversários. O Espírito de Deus tinha estado presente naquele concílio, impressionando o coração dos dirigentes do império. Vários dos príncipes reconheceram ousadamente a justiça da causa de Lutero. Muitos estavam convencidos da verdade, mas, noutros, as impressões recebidas não foram duradouras. Houve outra classe que no momento não exprimiu as suas convicções, mas que, tendo pesquisado as Escrituras por si mesmos, posteriormente se tornaram destemidos defensores da Reforma.
       O eleitor Frederico tinha aguardado ansiosamente a comparência de Lutero perante a Dieta, e, com profunda emoção, ouviu o seu discurso. Com alegria e orgulho testemunhou a coragem, a firmeza e o domínio próprio do doutor, e decidiu permanecer mais firmemente em sua defesa. Ele analisava as facções em contenda, e via que a sabedoria dos papas, reis e prelados, fora, pelo poder da verdade, reduzida a nada. O papado sofrera uma derrota que seria sentida entre todas as nações e em todos os tempos.
       Quando o legado percebeu o efeito produzido pelo discurso de Lutero, temeu, como nunca antes, pela segurança do poder romano e resolveu empregar todos os meios ao seu alcance para destruir o reformador. Com toda a eloquência e capacidade diplomática, pelas quais tanto se distinguia, apresentou ao jovem imperador a loucura e o perigo de sacrificar, pela causa de um monge desprezível, a amizade e apoio da poderosa Santa Sé de Roma.
       As suas palavras não deixaram de produzir efeito. No dia que se seguiu à resposta de Lutero, Carlos fez com que fosse apresentada uma mensagem à Dieta, anunciando a sua resolução de prosseguir com a política dos seus predecessores, mantendo e protegendo a religião católica. Visto que Lutero se recusara a renunciar aos seus erros, seriam usadas as mais rigorosas medidas contra ele e contra as heresias que ensinava. "Um simples monge, transviado pela sua própria loucura, levantou-se contra a fé da cristandade. Para deter tal impiedade, sacrificarei os meus reinos, os meus tesouros, os meus amigos, o meu corpo, o meu sangue, a minha alma e a minha vida. Estou para despedir o agostinho Lutero, proibindo-lhe de causar a mais pequena desordem entre o povo. Procederei então contra ele e contra os seus adeptos como hereges contumazes, pela excomunhão, pela interdição e por todos os meios próprios para os destruir. Apelo para os membros dos Estados a que se portem como fiéis cristãos." — D’Aubigné. Não obstante, o imperador declarou que o salvo-conduto de Lutero deveria ser respeitado, e que, antes de se poder instituir qualquer processo contra ele, deveria ser-lhe permitido chegar a casa em segurança.
       Surgiram agora entre os membros da Dieta duas opiniões contrárias. Os emissários e representantes do papa pediam, de novo, que o salvo-conduto do reformador fosse desrespeitado. "O Reno", diziam eles, "deveria receber as suas cinzas, como recebeu as de João Huss, há um século." — D’Aubigné. Mas os príncipes alemães, embora eles próprios fossem romanistas e inimigos declarados de Lutero, protestavam contra essa atitude que destruía a confiança do povo, como uma nódoa sobre a honra da nação. Apontavam para as calamidades que se seguiram à morte de Huss e declaravam que não ousavam atrair sobre a Alemanha, e sobre a cabeça do seu jovem imperador, a repetição daqueles terríveis males.
       O próprio Carlos, respondendo à vil proposta, disse: "Ainda que a fé e a honra fossem banidas de todo o mundo, deveriam encontrar um refúgio no coração dos príncipes." — D’Aubigné. Houve ainda insistência por parte dos mais acérrimos inimigos papais de Lutero, para que o reformador fosse tratado como Segismundo tinha feito com Huss — abandonando-o à mercê da igreja. Mas lembrando-se da cena em que Huss, em assembleia pública, apontara para as suas cadeias e tinha lembrado ao monarca a sua fé empenhada, Carlos V declarou: "Eu não gostaria de corar como Segismundo." — (Ver História do Concílio de Constança, de Lenfant.)
       Contudo, Carlos tinha rejeitado deliberadamente as verdades apresentadas por Lutero. "Estou firmemente resolvido a imitar o exemplo dos meus antepassados", escreveu o monarca. Tinha decidido não sair da senda do costume, em vez de andar nos caminhos da verdade e da justiça. Uma vez que os seus pais o tinham feito, ele apoiaria o papado, com toda a sua crueldade e corrupção. Assim, assumiu a sua posição, recusando-se a aceitar qualquer luz em acréscimo à que os seus pais tinham recebido, ou a cumprir qualquer dever que eles não tenham cumprido.

       Muitos hoje agarram-se, de modo idêntico, aos costumes e tradições dos seus pais. Quando o Senhor lhes envia mais luz, recusam-se a aceitá-la porque, como não foi concedida aos seus pais, não foi acolhida por estes. Nós não estamos colocados onde os nossos pais estavam. Consequentemente, os nossos deveres e responsabilidades não são os mesmos. Não seremos aprovados por Deus olhando para o exemplo dos nossos pais a fim de determinar o nosso dever, em vez de pesquisarmos, por nós mesmos, a Palavra da verdade. A nossa responsabilidade é maior do que a dos nossos antepassados. Somos responsáveis pela luz que receberam, e que nos foi entregue como herança. Mas somos também responsáveis pela luz adicional, da Palavra de Deus, que hoje está a brilhar sobre nós.
       Disse Cristo acerca dos judeus incrédulos: "Se Eu não tivesse vindo, e não lhes tivesse falado, não seriam culpados. Mas agora o seu pecado não tem desculpa." (João 15:22, O Livro). O mesmo poder divino tinha falado por intermédio de Lutero, ao imperador e príncipes da Alemanha. E, ao resplandecer a luz da Palavra de Deus, o Seu Espírito contendeu pela última vez com muitos naquela assembleia. Como Pilatos, séculos antes, tinha permitido que o orgulho e a reputação fechassem o seu coração contra o Redentor do mundo; como o medroso Félix ordenou ao mensageiro da verdade: "Por agora podes ir. Quando eu puder, chamo-te outra vez" (Actos 24:25, BN); como o orgulhoso Agripa confessou: "Por mais um pouco convencias-me a fazer-me cristão!" (Atos 26:28, O Livro) e, no entanto, desviou-se da mensagem enviada pelo Céu, assim tinha Carlos V cedido às sugestões do orgulho e da política mundanos, decidindo-se a rejeitar a luz da verdade.

       Circularam rapidamente rumores dos planos feitos contra Lutero, causando por toda a cidade grande excitação. O reformador tinha conquistado muitos amigos que, conhecendo a traiçoeira crueldade de Roma para com todos os que ousavam expor as suas corrupções, resolveram que ele não seria sacrificado. Centenas de nobres comprometeram-se a protegê-lo. Muitas pessoas denunciaram abertamente a mensagem real como evidência de tímida submissão ao poder de Roma. Às portas das casas e em lugares públicos, foram afixados cartazes, alguns a condenar e outros a apoiar Lutero. Num deles estavam apenas escritas as significativas palavras do sábio: "Ai de ti, ó terra, cujo rei é criança!" (Eclesiastes 10:16). O entusiasmo popular em favor de Lutero, por toda a Alemanha, convenceu tanto o imperador como a Dieta de que qualquer injustiça que fosse praticada contra ele poria em perigo a paz do império e até mesmo a estabilidade do trono.
       Frederico da Saxónia manteve uma estudada reserva, escondendo cuidadosamente os seus verdadeiros sentimentos para com o reformador, enquanto que o guardava com incansável vigilância, observando todos os seus movimentos assim como os de todos os seus inimigos. Mas, eram muitos os que não faziam nenhuma tentativa para ocultar a sua simpatia por Lutero. Ele era visitado por príncipes, condes, barões e outras pessoas distintas, tanto leigas como eclesiásticas. "A salinha do doutor", escreveu Spalatin, "não podia conter todos os visitantes que ali iam." — Martyn. O povo olhava para ele como se fosse mais do que humano. Mesmo os que não tinham fé nas suas doutrinas, não podiam deixar de admirar aquela sublime integridade que o levou a enfrentar a morte, de preferência a violar a consciência.

       Fizeram-se diligentes esforços a fim de obter o consentimento de Lutero para uma transigência com Roma. Nobres e príncipes lembraram-lhe que, se persistisse em colocar o seu próprio raciocínio contra o da igreja e dos concílios, em breve seria banido do império e não teria então defesa. A este apelo, Lutero respondeu: "O evangelho de Cristo não pode ser pregado sem dano. ... Porque, pois, deveria o temor ou a apreensão do perigo separar-me do Senhor, e da divina Palavra, que é a única verdade? Não! Mais depressa entregaria o meu corpo, o meu sangue e a minha vida." — D’Aubigné.
       Mais uma vez insistiu com ele para que se submetesse ao julgamento do imperador, e depois nada precisaria de temer. "Consinto", disse ele em resposta, "de todo o meu coração, que o imperador, os príncipes e mesmo o mais obscuro cristão, examinem e julguem os meus livros, mas, sob uma condição: que tomem a Palavra de Deus como norma. Os homens nada têm a fazer senão obedecer-lhe. Não façam violência à minha consciência, que está ligada e encadeada às Escrituras Sagradas." — D’Aubigné.
       A um outro apelo ele disse: "Consinto em renunciar ao salvo-conduto. Coloco a minha pessoa e a minha vida nas mãos do imperador, mas renunciar à Palavra de Deus — nunca!" — D’Aubigné. Declarou estar disposto a submeter-se à decisão de um concílio geral, mas unicamente sob a condição de que se exigisse do concílio decidir de acordo com as Escrituras. "No que diz respeito à Palavra de Deus e à fé", acrescentou ele, "todo o cristão é tão bom juiz como pode ser o próprio papa, embora apoiado por um milhão de concílios." — Martyn. Tanto amigos como adversários acabaram por se convencer de que quaisquer outros esforços para uma reconciliação seriam inúteis.
       Se o reformador tivesse cedido num único ponto, Satanás e as suas hostes teriam saído vitoriosos. Mas a sua persistente firmeza foi o meio para a emancipação da igreja e o início de uma era nova e melhor. A influência deste único homem, que ousou pensar e agir por si mesmo em assuntos religiosos, deveria afectar a igreja e o mundo, não só no seu próprio tempo mas em todas as gerações futuras. A sua firmeza e fidelidade fortaleceriam, até ao final do tempo, todos os que passassem por experiência semelhante. O poder e a majestade de Deus se mantiveram-se acima do conselho dos homens, acima da potente força de Satanás.

       Pela autoridade do imperador foi ordenado a Lutero que voltasse, de imediato, para casa, e ele sabia que este aviso seria imediatamente seguido da sua condenação. Nuvens ameaçadoras pairavam sobre o seu caminho. Mas, ao sair de Worms, o seu coração encheu-se de alegria e louvor. "O próprio diabo", disse ele, "guardou a fortaleza do papa, mas Cristo fez nela uma grande brecha, e Satanás foi obrigado a confessar que o Senhor é mais poderoso do que ele." — D’Aubigné.
       Depois da sua partida, ainda desejoso de que a sua firmeza não fosse mal-interpretada, confundida com rebelião, Lutero escreveu ao imperador: "Deus, que é quem investiga os corações, é minha testemunha de que estou pronto para, da maneira mais séria, obedecer a vossa majestade, na honra e na desonra, na vida e na morte, e sem excepções, a não ser a Palavra de Deus, pela qual o homem vive. Em todas as preocupações da vida presente, a minha fidelidade será inabalável, pois perder ou ganhar neste mundo não tem nenhuma consequência para a salvação. Mas quando estão envolvidos interesses eternos, Deus não quer que o homem se submeta ao homem, pois tal submissão em assuntos espirituais é verdadeiro culto, e este deve ser prestado unicamente ao Criador." — D’Aubigné.
       Na viagem de regresso de Worms, a recepção de Lutero foi ainda mais lisonjeira do que na sua ida para ali. Nobres eclesiásticos davam as boas-vindas ao monge excomungado, e governadores civis honravam o homem que o imperador tinha denunciado. Insistiu-se com ele para que pregasse e, apesar da proibição imperial, de novo subiu ao púlpito. "Nunca me comprometi a acorrentar a Palavra de Deus", disse ele, "nem o farei." — Martyn. Não estava, há muito tempo, ausente de Worms, quando os chefes coagiram o imperador a promulgar um édito contra ele. Nesse decreto, Lutero foi denunciado como o "próprio Satanás sob a forma de homem e sob as vestes de monge." — D’Aubigné. Foi então dada a ordem para que, logo que expirasse o prazo do seu salvo-conduto, fossem adotadas medidas para deter a sua obra. Proibia-se a todas as pessoas abrigá-lo, darem-lhe comida ou bebida, ou por palavras ou atos, em público ou em particular, auxiliarem-no ou apoiarem-no. Deveria ser preso onde quer que fosse possível, e entregue às autoridades. Deveriam também ser presos os seus adeptos, e as suas propriedades confiscadas. Deveriam destruir-se os seus escritos e, finalmente, todos os que ousassem agir contrariamente àquele decreto eram incluídos na sua condenação.
       O eleitor da Saxónia e os príncipes mais amigos de Lutero tinham-se retirado de Worms logo depois da sua partida, e o decreto do imperador recebeu a sanção da Dieta. Agora, os romanistas sentiam-se felizes. Consideravam selada a sorte da Reforma.

       Mas Deus tinha providenciado para o Seu servo nesta hora de perigo um meio para lhe escapar. Um olhar vigilante acompanhava os movimentos de Lutero e um coração verdadeiro e nobre tinha decidido a sua libertação. Era claro que Roma não se satisfaria com coisa alguma senão a sua morte. Só escondendo-se é que ele poderia ser preservado das garras do leão. Deus tinha dado sabedoria a Frederico da Saxónia para idealizar um plano destinado a preservar o reformador. Com a cooperação de verdadeiros amigos, executou-se o propósito do eleitor, e Lutero foi, de maneira eficiente, escondido dos seus amigos e inimigos. Na sua viagem de volta para casa, foi preso, separado dos seus assistentes e precipitadamente transportado através da floresta para o castelo de Wartburgo, uma fortaleza isolada nas montanhas. Tanto o rapto como o esconderijo foram de tal maneira envoltos em mistério, que até o próprio Frederico, durante muito tempo, não soube para onde é que ele tinha sido conduzido. Esta ignorância não deixou de ter o seu objectivo. Enquanto o príncipe eleitor nada soubesse do paradeiro de Lutero, nada poderia revelar. Convenceu-se de que o reformador estava em segurança e com isso ficou satisfeito.
       Passou a Primavera, o Verão e o Outono, e chegara o Inverno, e Lutero ainda permanecia prisioneiro. Aleandro e os seus partidários exultavam quando a luz do evangelho parecia prestes a extinguir-se. Mas, em vez disso, o reformador enchia a sua lâmpada no depositório da verdade e a sua luz deveria resplandecer com um brilho maior.
       Na proteção amiga de Wartburgo, Lutero durante algum tempo, alegrou-se por estar livre do ardor e da agitação da batalha. Mas não poderia por muito tempo encontrar satisfação no silêncio e repouso. Habituado a uma vida de atividade e conflito severo, suportava mal a inactividade. Naqueles dias de solidão, surgia diante dele o estado da igreja, e exclamava com desespero: "Ai! Ninguém há neste último tempo da ira do Senhor para ficar diante d'Ele como uma muralha e salvar Israel." — D’Aubigné. Novamente os seus pensamentos se voltavam para si mesmo e receava ser acusado de covardia por se afastar da contenda. Acusava-se, então, de indolência e condescendência própria. No entanto, produzia diariamente mais do que parecia possível a um homem fazer. A sua pena nunca estava ociosa. Os seus inimigos, embora se lisonjeassem por ele estar em silêncio, espantavam-se e confundiam-se pela prova palpável de que ainda estava activo. Inúmeros folhetos, escritos por ele, circulavam por toda a Alemanha. Também prestava um importantíssimo serviço aos seus compatriotas, traduzindo o Novo Testamento para a língua alemã. Da sua Patmos rochosa, continuou durante quase um ano inteiro a proclamar o evangelho e a repreender os pecados e erros do tempo.

       Não foi, porém, meramente para preservar Lutero da ira dos seus inimigos, nem mesmo para lhe proporcionar uma temporada de calma para esses importantes trabalhos, que Deus tinha retirado o Seu servo do cenário da vida pública. Visavam-se resultados mais importantes do que esses. Na solidão e obscuridade do seu retiro das montanhas, Lutero esteve afastado do apoio terrestre e excluído dos louvores humanos. Foi desta maneira salvo do orgulho e da confiança em si próprio, tantas vezes determinados pelo êxito. Através de sofrimentos e de humilhação, foi de novo preparado para andar em segurança na altura vertiginosa a que tão subitamente tinha sido exaltado.
       Quando os homens se alegram na libertação que a verdade lhes traz, são levados a engrandecer aqueles que Deus usou para quebrar as cadeias do erro e da superstição. Satanás procura desviar de Deus os pensamentos e as afeições dos homens, e fixá-los nos factores humanos. Leva-os a honrar o mero instrumento, e a desconhecer a Mão que dirige os acontecimentos da Providência. Muitas vezes dirigentes religiosos, que assim são louvados e reverenciados, perdem de vista a sua dependência de Deus e são levados a confiar em si próprios. Como consequência, procuram governar o espírito e a consciência do povo, que se dispõe a esperar que sejam eles a guiá-los, em vez de esperar na Palavra de Deus. A obra de reforma é muitas vezes atrasada por causa deste espírito por parte dos que a alimentam. Deus quis guardar a causa da Reforma deste perigo. Desejava que aquela obra recebesse não as características do homem, mas as de Deus. Os olhos dos homens tinham-se dirigido para Lutero como o expositor da verdade. Por isso, ele foi afastado para que todos os olhares se pudessem dirigir para o sempiterno Autor da Verdade.

Texto extraído do Livro O GRANDE CONFLITO de Ellen White – "LUTERO PERANTE A DIETA" - Capítulo 8 (versão portuguesa). Livro publicado em 2012 pela PUBLICADORA SERVIR, Portugal.
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Ver mais material, muito bom, sobre a Reforma Protestante, um pouco abaixo do início dos links dos meus blogs.