segunda-feira, 19 de março de 2012

PAIS MARAVILHOSOS



JORGE MÜLLER

O HOMEM QUE OUSOU CONFIAR NAS PROMESSAS DE DEUS


(Capítulo 10)

Era impossível dizer, olhando por trás dos gorros das mulheres e dos colarinhos engomados dos homens, como a sua congregação da Capela Gideão tinha recebido a notícia de Jorge naquele dia 9 de Dezembro de 1835.
Mas ali, na parte de trás da capela, perto da porta, ele sabia que tinha somente de pronunciar a bênção, e que antes mesmo do seu 'ámen' deixar de ecoar contra as austeras paredes e os gorros e os colarinhos, ele já não se perguntaria como tinham reagido à notícia de que ele acrescentaria trinta órfãos de Bristol à sua responsabilidade.
" ... e agora, em nome do Pai, do Filho, e do Espírito Santo. Ámen."

A esposa do padeiro foi a primeira a aproximar-se. Ele já esperava que ela o fizesse.
- Sr. Müller, orfanatos são coisas de invenção recente e positivamente insalubres.
- A minha mulher está certa. - disse o padeiro com a sua boca rechonchuda como um sonho assimétrico. - Casa de caridade é coisa boa para rapazes da rua.
Jorge procurava cumprimentar as pessoas, apertando-lhes a mão, como se estivessem fazendo observações superficiais sobre o tempo.
- Vocês são muito jovens para se colocarem contra o que já foi experimentado e deu resultado.
A mulher seguinte veio para ele com o seu dedo ameaçador:
- Trinta anos de idade e fingindo que conhece muito!
O dono da mercearia, o funcionário, o guarda da loja, passaram ao largo, dizendo:
- Vivíamos muito bem aqui em Bristol antes de o senhor morar aqui.
- Parece-me um plano despropositado. Mergulhar nele sem meditação, isso é o que o senhor está a fazer.

Aquilo era injusto. Jorge tinha pensado muito a esse respeito, tinha orado sobre o problema por várias semanas. Ele não tinha convocado esta reunião especial para anunciar os seus planos enquanto não estivesse seguro do que Deus desejava.
Isolando-se no seu escritório, longe de Mary, da pequena Lídia e dos ruídos caseiros de cozinhar, vestir e brincar, dias e dias tinha ele repetido a mesma oração ousada:
"Deus, preciso de mil libras para dar início ao trabalho. Preciso de encontrar uma casa de tamanho suficiente para uma família com trinta filhos. Preciso, pelo menos, de três ou quatro pessoas que me auxiliem, pessoas cristãs que gostem de crianças e saibam ensinar-lhes ou cozinhar para elas, ou dirigi-las. E as crianças necessitarão de roupas, camas em que dormir e pratos onde comer. Creio que tu podes fazer isto, e deixarei tudo em Tuas mãos. Ámen."
Diariamente, depois de ter orado, ele perguntava a si próprio se não estava sendo ousado demais. Estava ele pedindo demais desta vez?
Então um dia ele abriu a Bíblia e, como amiúde fazia quando estava com um problema complicado para resolver, ou solitário, ou à espera de que Deus lhe falasse, ele leu um salmo. Começou com o salmo 79, leu o 80 também, e começou a ler o seguinte.

"Abre bem a tua boca, e ta encherei" leu no versículo 10 e quase deu uma gargalhada. Estava ali a resposta! Ele tinha aberto bem a boca, abriu-a o bastante para pedir a Deus, sem rodeios, sem cerimónias, uma lista de necessidades tangíveis. E Deus não o censurou por isso. Estava ali, nos Salmos, e ele cria de todo o coração que Deus lhe estava a falar. "Abre bem a tua boca, e ta encherei." Era uma promessa! Agora ele estava pronto para concretizar os seus sonhos baseado nela.

A congregação ainda estava passando pelo corredor, alguns mais junto à parede e saindo pela porta sem falar. Um gorro saltitava diante dele, e ele estendeu a mão para agarrar uma mão quente, amiga.
- Deus o ama, pastor Müller - disse uma voz macia como manteiga. - Por que o senhor não levanta uma colecta?
Abre bem a tua boca, e ta encherei!

- Nada de colecta, irmã. Essa foi a minha combinação com Deus. Não pedirei nada aos homens.
- Não importa. Aqui está a minha pequena contribuição. Não é muito. Apenas dez xelins. Mas é um começo.
- Deus a abençoe, irmã. - O gorro fez uma mesura de reverência.
- Pastor Müller, estou em boa forma física, posso costurar e ...
Uma mulher de ombros erectos apresentou-se diante dele:
- Sei que não pareço elegante, mas posso imaginar bolinhos gostosos e dou-me muito bem com crianças. Há lugar para mim, pastor Müller?

Abre bem a tua boca, e ta encherei.

- Se há lugar? Ora eu... Deus a abençoe.
- Eu não receberia pagamento algum. - Os ombros pareciam ficar mais erectos e mais largos. - Apenas trazer comigo minha pequena pensão e confiar no bom Deus para o restante.
Só havia uma resposta a dar-lhes: "Abre bem a tua boca, e ta encherei."

O homem seguinte na fila parecia perplexo, mas Jorge estendeu-lhe a mão, e, radiante, cumprimentou o seguinte.
Mas uma coisa obscurecia a brilhante maravilha de tudo aquilo. Era Mary. Ela mostrava-se indecisa. Duvidava, era pessimista. Ela também estava zangada:
- Não deite esse envelope no chão limpo da minha cozinha - disse asperamente a Jorge na manhã seguinte à reunião pública. Mas, lendo a carta, dificilmente ele ouvia.
- Isto é importante, Mary. Importante! Apenas anunciei ontem e já...
- As suas crianças sem lar já desejam mudar-se para o novo lar? - gritou ela da despensa, numa fúria de vibrar de pratos. Ele a ignorou. - É uma carta de um marido e esposa, um casal cristão...
- Quem?!
- Ninguém que conhecemos. Vem do interior. Mas ouça: e começou a ler, elevando a voz de modo que fosse ouvida na porta da despensa.
"Propomo-nos para o serviço da projectada Casa de Órfãos, se o senhor nos julgar qualificados para tanto."
A fúria dos pratos diminuiu, depois elevou-se.
- Oh!
- E isso não é tudo. "Também abrimos mão da mobília que o Senhor nos deu. Para uso do seu Lar!" - Mary apareceu na porta da despensa, com as mãos na farinha.
- Toda a mobília deles!
" ... e fazer isso sem receber nenhum salário, crendo que se for da vontade do Senhor empregar-nos, Ele suprirá todas as nossas necessidades."
- Mas eles nem mesmo conhecem você, Jorge!
- Conhecemos o mesmo Cristo. Isso basta.
- Dois ajudantes já. Isso é um sinal. Num dia! - Ela veio e postou-se junto ao fogão, repetindo: "Num dia!"
- Três ajudantes e uma casa cheia de móveis.
- E dez xelins.
- Tão cedo! Você não pediu a ninguém, ou pediu, Jorge?
- A ninguém - disse ele solenemente.
- Deve... Há somente uma coisa em que pensar. Deus deseja que se faça desse modo.

Ele desejava beijá-la, mas em vez disso, disse-lhe:
- Claro que sim! Creia comigo, Mary.
Ela tocou com os dedos a frigideira no fogão.
Por fim, disse:
- Acho que posso.
- Graças a Deus!
- Sim, demos graças a Deus. Aqui mesmo na cozinha.
Ela fechou os olhos, apoiando-se no fogão.
"Deus amado, toma a nossa pequena fé e fá-la forte. Dá-nos aquilo de que necessitamos. Dinheiro, roupas e utensílios de cozinha e... tantas coisas. É o que Te pedimos. Tu podes. Ámen."
Estavam agora eles ali, sorrindo um para o outro.
Jorge sentia-se subitamente grato por ter-se casado com esta inglesa sensível, quando ouviram bater com força na porta dos fundos.

Era um homem que ele nunca tinha visto. Somente a ponta de um nariz vermelho, por causa do vento, e dois olhos lacrimosos apareciam sobre uma pilha de pacotes nos braços.
- É para os seus órfãos - disse uma voz rouca por detrás da pilha.
Os pacotes foram colocados no chão, e o homem retirou-se numa disparada pela rua antes mesmo que Jorge pudesse dizer-lhe uma palavra. Mary estava na porta, atrás dele.
- Bem, abra-os!
Baixando-se ambos no chão da cozinha, romperam facilmente a corda desgastada e rasgaram o papel que envolvia os pacotes. Dentro havia meia dúzia de pacotes cheios de protuberâncias, embrulhadas em papel sujo e amarrotado.
- Pratos de jantar! - exclamou Mary.
- Vinte e oito pratos! Suficientes para...
- Vinte e oito jantares para vinte e oito pessoas.
- E há três grandes travessas de servir.
- Três bacias para lavar. - Mary agarrou o pacote seguinte.
- Um jarro!
Jorge ia puxando os pacotes.
- Canecas. Três saleiros.
- Um ralador. - Mary colocou-o triunfantemente no chão. - E quatro facas.
- E cinco garfos. - Jorge agitou-os no ar. Ali no chão da cozinha, em frente do fogão, os pratos, as travessas, as canecas e os saleiros estavam no velho papel de embrulho.

Sem saberem absolutamente de onde, um estranho tinha trazido à porta deles o que o orfanato iria necessitar. Como é que esse homem, com a voz guinchada, sabia que eles tinham orado naquela manhã pedindo utensílios de cozinha? Jorge estava seguro de que nunca saberia realmente, mas também estava seguro de que ambos, Mary e ele, tinham uma resposta muito boa.
O mês que se seguiu convenceu-o de uma vez por todas.
Naquela mesma semana um empresário de Bristol deu-lhe 50 libras destinadas ao orfanato.
- Cinquenta libras! - exclamou Mary. - Quando nos casámos vivemos um ano com cinquenta libras.

Oraram pedindo roupas para trinta crianças.
Alguém fez um donativo de 20 metros de tecido resistente.

Oraram pedindo mais auxiliares. Uma governanta apresentou-se como voluntária.

Uma semana depois, um negociante de Bristol, que tinha demonstrado considerável irritação com a pregação de Jorge, doou 100 libras para o orfanato.

No final de Janeiro Jorge entrou na cozinha, tomou a torta de carne das mãos de Mary, colocou-a sobre a mesa, e agarrando a esposa pela cintura rodopiou com ela.
- Consegui-a! - disse. - Consegui-a!
- A casa?
- Sim! A casa. Uma monstruosidade da rua Wilson. Uma antiga monstruosidade situada ali, apenas ansiando por ter trinta crianças mudando-se imediatamente para lá e deslizando pelos corrimões e gritando do sótão até à despensa nos fundos, e também escrevendo nas paredes. É uma arca de Noé, mas é tão confortável! Você tem de gostar dela.
- Que tal a cozinha? - perguntou Mary com o seu senso prático.
- Grande. O fogão parece bom. E o forno também. Espere até você ver o forno.
- E é realmente sua?
- Toda minha. E toda pronta para nos mudarmos no dia 1º de Fevereiro. Mary, conseguimos o nosso orfanato! Conseguimos tudo de que necessitamos.
- Excepto as crianças.

Ali estavam ambos, olhando radiantes um para o outro.
- Como é bom o nosso Deus, não é, Mary?
- Ele é bom. Agora, dê-me de volta a minha torta de carne e vamos comê-la.

Do lado de fora, a casa de tijolos da rua Wilson alinhava-se directamente com o passeio, não parecendo diferente das casas vizinhas. As suas seis janelas trabalhadas, de frente para a rua, eram exactamente espaçadas como as janelas da casa vizinha e as da casa ao lado. A rua toda assemelhava-se a uma fila de crianças em uniforme escolar não muito brilhantes. Os degraus, que nada mais eram do que a via para se ir da calçada à porta, decoravam a casa, e degraus idênticos levavam a todas as casas, como num desfile pela rua Wilson. Mas quando abriu a porta da casa nº 6 da rua Wilson, na manhã do 1º de Fevereiro, ele sabia que ela era diferente.
Daquele dia em diante não haveria outra casa como aquela na rua, nem em Bristol, nem em parte alguma de Inglaterra.

Dois dias depois, Jorge assentou-se a uma pequena mesa na sala da frente. As portas da rua Wilson nº 6 estavam agora oficialmente abertas. Qualquer pessoa podia entrar e solicitar abrigo para uma criança sem lar. Era o dia 3 de Fevereiro, anunciado como o dia da inauguração, e, enquanto Jorge dispunha os papéis e os livros para o registo das contas, esperava ver a sala tão apinhada de candidatos que teria de pedir a alguns que esperassem na cozinha. Ele desejava que isso não fosse necessário, porque a cozinha ainda não estava pintada de novo.

Durante meia hora ele esteve ali sentado em devaneios acerca da pintura da cozinha e de um novo arranjo nos móveis dos dormitórios. Depois dirigiu-se à porta da frente e deu uma espreitadela pelo postigo. Uma porta aberta daria um ar mais amistoso, mas era Fevereiro fazia frio. Hesitou, e então voltou para a mesa. Durante uma hora concentrou-se na escritura dos livros, e aí começou a sentir-se inquieto.

Junto à janela ele observava a rua Wilson para cima e para baixo. Uma velha encarangada vinha a arrastar-se. Ela examinou bem a casa com ar de curiosidade. Ele quis bater na janela para indicar que havia alguém ali, mas a mulher já tinha ido.
Quando ela fez parar um homem bem vestido que vinha pela rua, Jorge percebeu que se tratava de uma mendiga. O homem passou directo.
Agora ele estava com fome. Era quase meio-dia. Na cozinha não havia nada que comer. Ele estava emocionado demais para lembrar-se de alimento... Sem objectivo, pegou a pena e começou a somar colunas de números. Era tudo silêncio, excepto pelo estalar das velhas vigas no frio e pelo arranhar da sua pena.
Foi até à janela de novo. Lá fora, as casas cinzentas enfileiravam-se pela rua cinzenta, à semelhança de muitas crianças que se esqueciam de lavar o rosto. Uns poucos flocos de neve batiam contra a janela, e as pessoas que tinham estado na rua foram-se todas embora.
Então ele teve de admitir a terrível verdade.
Ninguém vinha. Nem as autoridades locais. Nem tias e tios agradecidos. Nem crianças tristonhas, tremendo de frio. Ninguém, absolutamente ninguém. Ninguém vinha.

Parecia-lhe ouvir a mulher do padeiro e as suas amigas a dizer-lhe: "Não lhe dissemos? Isso não prova as nossas advertências? Bristol ainda não está preparada para um orfanato moderno."
Ele observou os corrimões na sala da frente.
"Não sei. Simplesmente, não sei", disse em voz audível. Mas ninguém abriu a porta da frente para dar-lhe resposta.

(Capítulo 11)
...

Dentro de um mês havia 42 solicitações no arquivo. E na Primavera, em Maio de 1836, o orfanato da rua Wilson nº 6 foi oficialmente aberto. As crianças, as cozinheiras e a governanta mudaram-se para lá. Agora Jorge e Mary tinham sob a sua responsabilidade 43 crianças contando com a filha, Lídia, de 4 anos. E logo tomaram conhecimento de tantas criancinhas que necessitavam desesperadamente de um lar, que Jorge alugou a 2ª casa na rua Wilson.
No fim do ano ele abriu o 2º orfanato. E depois de nove meses alugou a 3ª casa na mesma rua, e antes que tivesse tempo para dar uma mão de tinta nas salas, ou limpar as janelas, já mais 30 meninos órfãos das favelas de Bristol estavam escorregando pelos corrimões.

Decorreu um ano e meio. Jorge cumpriu a palavra: nunca falou sobre dinheiro em público. Recusou-se a pedir donativos a quem quer que fosse. Mas o povo de Bristol contribuía com regularidade e generosidade para os 3 lares. Havia mais do que o suficiente para pagar as contas de alimentação, salários do pessoal, roupa e livros escolares.


Mas dois anos depois de inaugurado o 1º lar, no dia 18 de Agosto de 1838, Jorge viu-se forçado a registar no seu diário: "Não tenho em mãos uma moedinha sequer para os órfãos! Dentro de um dia ou dois vou precisar de muitas libras!" ...
Naquele dia ele pleiteou com Deus: "Deus, o Lar das Crianças precisa de 10 libras hoje. Já lhes dei tudo o que há na tesouraria, mas eram apenas 5 libras. Elas precisam de mais 5 libras, e precisam delas hoje. Deus, confio em Ti para de qualquer modo suprir essa quantia."
A mulher que entrou agitada em sua casa na rua Paulo, um pouco mais tarde, usava um vestido de seda que farfalhava sob o manto, e Jorge aspirou o perfume quando ela se sentou no seu gabinete. Ela enfiou na bolsa uma pequena mão enluvada, suspirando em tom de confidência:
- Assim, quando Deus me disse que não usasse mais essas jóias vistosas, irmão Müller, Ele me disse algo mais, também. Que me livrasse delas!
Um punhadinho de moedas retiniu sobre a escrivaninha.
E dar o dinheiro a alguém. Pensei nos órfãos. Eu tencionava vendê-las, mas isso poderia demorar algumas semanas, por isso achei que deveria vir aqui hoje com o dinheiro que elas valem.
Os olhos dele separavam as moedas enquanto a mulher falava.
- Realmente, receio que essas jóias vistosas não valham muito. As moedas não significam grande coisa.
- Cinco libras - interrompeu Jorge.
- Cinco libras e uns xelins. Deus não lhe dá muito por meu intermédio, mas...
- Não muito. O suficiente!
- Apenas cinco libras.
- Mais do que cinco libras. Ele dá a resposta exacta à oração. Exacta até à última libra!
...

Jorge Müller - Faith Coxe Bailey - Editora VIDA, 1988, tradução de Hagar A. Caruso

LOUVOR A DEUS

Como são grandes as riquezas de Deus!
Como são profundos o Seu conhecimento
e a Sua sabedoria!

Quem pode explicar as Suas decisões?
Quem pode entender os Seus planos?

Como dizem as Escrituras Sagradas:
"Quem pode conhecer a mente do Senhor?
Quem é capaz de Lhe dar conselhos?

Quem já deu alguma coisa a Deus
para receber d'Ele algum pagamento?"

Pois todas as coisas foram criadas por Ele,
e tudo existe por meio d'Ele e para Ele.

Glória a Deus para sempre! Ámen.


Romanos 11:33-36


Leia mais em - MEDITAÇÃO PARA A SAÚDE - 19.03.2012 - Links 1R

quinta-feira, 8 de março de 2012

APENAS UMA PEQUENA MULHER


OS MILHÕES DE CHINESES  (Início do 1º Capítulo)

A maior ambição da minha vida era trabalhar no palco. Embora tivesse pouquíssima formação eu sabia falar e gostava muito de representar.
Cresci num lar cristão e frequentei a igreja e a escola dominical quando criança, mas, ao ir ficando mais velha, tornei-me impaciente com tudo o que dissesse respeito à religião.
Naquela época, a maioria das moças das classes trabalhadoras empregavam-se como 'domésticas', por haver poucas oportunidades de outro tipo de trabalho para elas. Assim, tornei-me uma empregada, mas, de noite, fazia um curso de artes dramáticas pois estava decidida a economizar e, por bem ou por mal, chegar até à 'ribalta'.

Certa noite, porém, por motivo que jamais consegui explicar, fui a uma reunião religiosa. Ali, pela primeira vez, percebi que Deus tinha direito à minha vida, e aceitei a Jesus Cristo como Salvador. Tornei-me membro da Campanha Vida Jovem, e, numa revista dessa entidade, li um artigo sobre a China que me impressionou tremendamente. Saber que milhões de chineses nunca tinham ouvido falar de Jesus Cristo foi para mim uma descoberta assombrosa, e achei que certamente tínhamos a obrigação de fazer algo a esse respeito.
Primeiro, fui procurar os meus amigos cristãos e falar com eles sobre o assunto, mas ninguém pareceu demonstrar muito interesse. Depois tentei falar com o meu irmão. Tinha a certeza de que, se eu o ajudasse, ele iria para a China com prazer!
- Eu não! - disse ele, sem hesitar. - Isso é serviço para solteironas. Por que não vai você?
Serviço para solteironas, essa é boa! pensei com raiva. Mas a estocada tinha atingido o lugar certo. Por que deveria tentar empurrar outras pessoas para a China? Por que não ir eu mesma?

Comecei a pesquisar como poderia preparar-me para ir para um país a milhares de quilómetros de distância, do qual quase nada sabia, a não ser que precisava de gente que falasse do amor de Deus. Disseram-me que eu devia apresentar-me a uma certa sociedade missionária, e acabei frequentando a Escola dessa sociedade por três meses.
No fim desse período, a comissão chegou à conclusão de que as minhas qualificações eram muito escassas, a minha instrução muito limitada. A língua chinesa, segundo eles, seria difícil demais para eu aprender.
Saí da entrevista em silêncio, todos os meus planos em ruínas. Revendo agora aquela cena, não posso culpá-los. Sei, melhor do que ninguém, quão idiota devo ter parecido. O ter aprendido não só a falar, mas também a ler e a escrever o chinês como uma pessoa nativa, em anos posteriores, é para mim um dos grandes milagres de Deus.
...
O Sr. Xan (14º capítulo)

Após deixar o mosteiro, não tive outro recurso a não ser voltar. O Dr. Huang disse que a viagem levava 5 dias. Já fazia 17 que partíramos, e ele tinha esposa e filhos em casa. Eu não podia continuar sozinha por bandas tão inóspitas e desabitadas. Assim, voltámos a Tsin Tsui, dando testemunho a todos os que encontrávamos pela estrada. De Tsin Tsui, fui a Fenghsien para contar aos estudantes a forma maravilhosa mediante a qual Deus tinha respondido às suas orações.

Algum tempo depois, vi-me obrigada a ir a uma certa cidade totalmente desconhecida. Tudo o que eu possuía era um vestido esfarrapado que me tinham dado, e sentia-me absolutamente desapontada e perplexa. Por que Deus me enviara a esta cidade estranha, sem dinheiro algum? Era uma cidade enorme, cheia de estudantes. O que havia ali para mim?
Fui recebida por um médico chinês e sua esposa. Eles trataram-me com muita bondade. Um dia, sentada numa poltrona da casa deles, percebi que dois homens atrás de mim falavam de um certo lugar na cidade onde havia gente que jamais ouvira falar de Jesus Cristo. Esquecendo-me completamente das boas maneiras, interrompi-os abruptamente:

- Senhores, por certo estão enganados. Há igrejas por toda a cidade; há reuniões por toda a parte; há centenas de cristãos.
- Senhora, deve ser de fora, não?
- Faz dois dias que cheguei.
- Estávamos a falar da cadeia.
- Existe uma cadeia aqui?
- Ora, temos aqui a segunda maior prisão da China e ninguém jamais a visitou para falar àqueles pobres desgraçados de Jesus Cristo.

Conversei mais um pouco com eles, mas não fiquei particularmente perturbada. Afinal de contas, o trabalho das prisões nada tinha a ver comigo. Eu sempre pregara nos vilarejos e cidadezinhas - esse era o meu trabalho.
Mas não consegui ficar em paz. Deus me dizia, de forma muito clara, que, gostasse ou não, eu era responsável por aqueles presos. Cristo morrera pela alma de cada um deles, e eu viera à China para proclamar esse evangelho aonde quer que Deus me conduzisse.

No final da semana, tive uma entrevista com o governador. A sua maneira foi extremamente bem-educada, mas a sua atitude tão condescendente deixou-me muito nervosa.
- Em que posso servi-la, senhora? - perguntou, olhando friamente para mim.
- O senhor permitiria que eu fosse à prisão para falar de Jesus Cristo aos prisioneiros?
- A senhora deseja entrar na prisão?
- Sim.
- E o que pretende fazer se eu lhe permitir falar aos homens?
- Pretendo mudar a prisão!
- Senhora, já vai para 5 anos que sou governador, e não consegui a mínima mudança.
- Mas eu tenho a Jesus Cristo. É Ele quem pode produzir a mudança.

Deram-me um passe e fui escoltada até ao grande pátio interior. Os guardas fizeram entrar fileiras e mais fileiras de homens sujos, degradados, cujos rostos reflectiam crueldade. Uns gritavam, outros riam e outros ainda gracejavam.
Eu era tão baixa que precisei de subir num pequeno monte de terra. Falei-lhes, contei-lhes histórias. Dia após dia eu me colocava em pé perante os presos, com o coração batendo violentamente, mas a consciência da necessidade terrível e desesperada daqueles homens incitava-me a prosseguir.

Orava por eles durante horas, noite após noite. Frequentemente, quando devia estar a dormir, saía pelas encostas das montanhas acompanhada de um cristão leproso. Andávamos e orávamos, não tendo coragem de parar porque ele era 'impuro' de corpo, mas tão verdadeiramente puro de coração.
Além de ir à prisão, eu visitava o leprosário, e acredito que foram as orações dos leprosos crentes que me deram forças naquelas primeiras terríveis semanas.
Afinal, um prisioneiro converteu-se, depois outro, até que cinco vinham tomar os seus lugares ao meu lado e testemunhar da mudança que Deus tinha operado nas suas vidas. Essas conversões foram algo maravilhoso, mas a prisão certamente não tinha sido mudada, e milhares ainda zombavam da Palavra de Deus.


Certo dia, eu terminara de falar e ia sair magoada, cansada e desesperada. Queria ver-me longe daquele incrível mau cheiro de humanidade imunda, quando o portão se abriu e quatro homens foram arrastados para dentro. Estavam acorrentados uns aos outros e foram atirados com violência para o chão. Os guardas, com as armas em punho, se colocaram em cima deles.
O meu primeiro pensamento foi: Saia daqui o mais rápido que puder.
Apressava-me para a saída quando ouvi alguém dizer: "Gladys Aylward, morri por eles tanto quanto por você."
Fui até junto a um dos guardas e perguntei: "Posso falar com esses homens?"
Brusca e rudemente, ele recusou o meu pedido.
Andei devagar em volta do pátio, orando, e pedi novamente.
Desta vez, a resposta foi um palavrão, e um grito:
"Ponham essa peste de mulher lá fora!" O guarda do portão levou-me para fora.

Alguns dias mais tarde fiquei a saber que os quatro presos eram assassinos. Três já estavam mortos; apenas um, o Sr. Xan, ainda vivia. O Sr. Xan era jovem, de boa aparência, não arrogante, mas percebia nele um quê de pura maldade. Ele olhou para mim de uma forma horrivelmente ofensiva, e disse coisas que não posso repetir. Senti intensa repulsa, mas orei por ele e levei os meus amigos a orar também. Um certo dia, tentando falar com ele, o Sr Xan soltou uma praga, e, voltando-se, cuspiu-me no rosto. Cheguei quase a odiá-lo.

Passaram-se os meses, e eu consegui a ajuda de outras pessoas. Alguns prisioneiros se converteram e tínhamos um grupo de quarenta, preparando-se para o baptismo. Mas, ainda assim, a bênção não tinha varrido a prisão mudando-a de forma visível.
Do leprosário, porém, subiam orações incessantes.

Um certo dia, ao terminar de falar, os homens dispuseram-se em filas para voltar às celas. Tinham sempre de ir em marcha acelerada, e não podiam falar enquanto se moviam.
Em pé, fiquei a vê-los passar com o meu coração sentindo compaixão deles. A essa altura, já conhecia a maioria deles. Sabia por que estavam na cadeia e, embora não tivesse permissão para falar, eu podia sorrir e acenar com a cabeça.
No fim da fila, vi o homem que eu tanto detestava, o Sr. Xan, o homem que parecia ter o coração mais duro do que os próprios muros da prisão.

Com muita clareza, disse-me uma voz:
- Fale com aquele homem!
- Oh, não - repliquei. - Ele detesta-me! Chegou a cuspir em mim. Além disso, a lei declara que não devo falar com ele enquanto a fila está em movimento.
- Mesmo assim, você precisa de falar com ele.

O que fazer? Comecei a suar frio. Ele estava quase a chegar aonde eu me encontrava. Na minha agitação, inclinei-me para a frente e encostei a mão no ombro dele, enquanto dizia apressadamente:
"Oh, Sr. Xan, o senhor deve ser muito infeliz!"
Que coisa mais tola para dizer, pensei imediatamente.
Com uma horrível maldição, ele se livrou da minha mão.
- O que é que a senhora tem que ver com isso?
- É porque eu sou tão feliz!
- É claro que é. A porta não se abre para si todas as vezes que deseja sair?
- Ah, não é por isso, não. É porque Jesus Cristo morreu por mim.

O Sr. Xan continuou a marcha. Caindo em mim, percebi o terrível deslize que cometera. Um dos princípios chineses mais importantes é que mulher alguma jamais deve tocar num homem em público.
Deixei a prisão deprimida e envergonhada. Diante daqueles homens, eu tinha-me maculado. E com um homem como ele!

O Sr. Xan seguiu a fila e sentou-se numa pedra num pátio interior com a cabeça entre as mãos. Alguns momentos mais tarde, Dhu Cor, o primeiro preso convertido, viu-o ali sentado.
- Está a sentir-se mal? - perguntou, olhando-o atentamente.
- Você viu o que ela fez?
- O quê?
- Ela tocou-me!
- Não. É mentira!
- Não é mentira. Ela pôs a mão no meu ombro.
- Não posso acreditar.
Um outro preso, que estivera a ouvir, entrou na conversa:
- O que ele está a dizer é verdade. Ela realmente tocou nele.
- Ela me tocou como se gostasse de mim! - disse o Sr. Xan ofegante.
- Talvez ela realmente o ame - respondeu Dhu Cor.
- O quê, uma mulher pura como ela amar-me, um assassino, que a amaldiçoou e cuspiu nela?!
- Sim, creio que ela pode amar você porque acredita que Deus o ama, não importa o que tenha feito.

O Sr. Xan converteu-se, não como resultado de um grande sermão, mas por que, muitos anos atrás em Londres, Deus tomou uma moça e pediu-lhe que lhe dedicasse as mãos, os pés - o corpo inteiro - para serem usados no Seu trabalho. E, naquele dia, Deus tocou o Sr. Xan através daquele pobre instrumento humano.

A conversão do Sr. Xan deu início a um verdadeiro reavivamento naquela prisão. Os homens passavam horas ouvindo a Palavra de Deus; passavam horas de joelhos; e foram precisos três dias para baptizar a todos.
Testemunhos, especialmente o do Sr. Xan, apareceram no boletim da prisão. Não se passou muito tempo para eu começar a receber convites de outras prisões.
O próprio governador, convencido pela transformação dos criminosos mais endurecidos, converteu-se e proclamou em termos bem claros que o que ele fora incapaz da fazer em cinco anos, o poder do glorioso evangelho da salvação conseguiu em um.


Extractos do livro Apenas Uma Pequena Mulher, biografia de Gladys Aylward, Editora Vida, adaptado para o cinema sob o título - A Pousada da Sexta Felicidade - "Um filme baseado na história verdadeira de Gladys Aylward, cuja paixão irredutível por fazer o bem a levou a percorrer o mundo... Drama baseado na verdadeira história de Gladys Aylward, mulher que dedicou a sua vida a fazer o bem pelos outros.

A inglesa Gladys (Ingrid Bergman) tinha o sonho de se tornar missionária. Trabalhava como empregada quando viajou para a China e abriu uma pensão. Levou algum tempo até vencer a hostilidade dos habitantes locais, chegando a ganhar o amor de um coronel (Curt Jurgens) e a converter um poderoso mandarim (Robert Donat) ao cristianismo. O seu grande feito acontece quando, durante a invasão japonesa da China, ela consegue levar uma centena de crianças sem lar para um local seguro atravessando território dominado pelo inimigo.
Adaptado do best-seller The Small Woman, de Alan Burgess, foi indicado para o Óscar de melhor realizador.
(A minha opinião é que o livro é melhor do que o filme... E.E.)


Envolva-se nesta vibrante música - VOU TESTEMUNHAR DO AMOR - Links 5M